sábado, 16 de agosto de 2014

A fé religiosa e o Efeito Placebo

Anatomische les van Dr. Deijman - Rembrandt
"O efeito placebo provoca mudanças reais:
1.- o efeito de um analgésico placebo corresponde a 6-8 mg de morfina (LEVINE; GORDON, 1984) em um estudo em dor pós operatória de cirurgia odontológica;
2.- há uma fortíssima correlação entre os efeitos analgésicos do placebo com aumento de opióides internos, sendo estabelecida sua mediação em pelo menos alguns tipos de analgesia por placebo (LIPMAN et all, 1990).
3.- o efeito placebo analgésico é cortado bloqueando-se receptores para opióides (BENEDETTI, 2008);
4.- o efeito placebo também aumenta a produção de dopamina em neurônios dos núcleos da base, em pacientes com doença de Parkinson (BENEDETTI, 2008)."[1]
Experiências subjetivas não são evidências científicas para validar a hipótese Deus, nem milagres de cura nem para validar coisa alguma.
Não só por conta do efeito placebo, mas também pelo próprio funcionamento do cérebro, que busca padrões, tenta dar sentido a tudo, edita memórias, suprimindo-as ou criando-as, cria alucinações, sons e sensações a partir dos hormônios que libera. "O seu cérebro não consegue analisar as situações de forma completamente racional, avaliando todas as variáveis envolvidas em cada caso. Para fazer isso, ele precisaria de ainda mais circuitos - e muito mais energia. Mas, ao longo da evolução, a natureza encontrou uma solução: o cérebro pode mentir para seu dono. Sim, mentir. Descartar informações, manipular raciocínios e até inventar coisas que não existem. Dessa forma, é possível simplificar a realidade e reduzir drasticamente o nível de processamento exigido dos neurônios. São efeitos colaterais do funcionamento normal do cérebro"[2], diz Suzana Herculano-Houzel, neurocientista da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
A explicação dos fenômenos sensoriais criados pelo cérebro como sendo de ordem mística, sobrenatural e divina denota apenas que os indivíduos em questão não se deram ao trabalho de investigar outras possíveis causas para tais ocorrências. Ou, tendo-as investigado, preferiram negar as conclusões cientificas, apesar de usufruírem cotidianamente dos frutos da ciência, e confiarem suas vidas e sua segurança a áreas do conhecimento humano como Medicina, Arquitetura, Biologia, Astronomia, Informática, Transportes e tudo o mais. Todas as experiências místicas de fé religiosa que são divulgadas como prova da interferência do sobrenatural no mundo real e, por extensão, da existência de um deus, são passíveis de serem explicadas pela ciência, inclusos aí os milagres de cura, as possessões, as alucinações, mudanças de comportamento, de voz e mesmo de personalidade. Na verdade, a maioria já o foi.
O efeito placebo da fé religiosa eventualmente (mas nem sempre) possibilita aos crentes em um deus que vivenciem realmente as consequências desta fé em seus corpos, em seu cérebro e em sua vida, porém, quando posta à prova nos eventos externos a esses indivíduos, a crença em um deus não faz diferença nas Leis da Física ou na aleatoriedade e nas probabilidades estatísticas. Crer que um deus lhe dará uma vaga de emprego, mais dinheiro, sucesso profissional ou oportunidades de melhoria na qualidade de vida ou proteção contra os males do mundo é infrutífero e contraprodutivo, pois nada disso depende do efeito placebo, e expõe a capacidade desse indivíduo de transpor para uma causa externa a si o que deveria ser fruto de seus cuidados, esforços e trabalho. A crença de que um deus pode e vai agir sobre os outros seres humanos e sobre a natureza para beneficiar alguém que crê nele pode até paralisar os esforços individuais para o gozo da vida plena e ser um causador de constantes frustrações, complexos de culpa de não estar orando o suficiente ou de não ser um bom fiel, ou mesmo suscitar a necessidade de encontrar um culpado pelos seus fracassos que não seja ele mesmo ou o sistema econômico injusto em que está inserido. É quando se chega, então, aos conceitos de pecado, demônios agindo, culpas a expiar e motivos misteriosos de Deus para o fracasso e as angústias pessoais.
O relacionamento crente/Deus baseia-se, mais que tudo, numa relação de troca de favores: o crente ora, jejua, pratica rituais, doa dinheiro às igrejas, canta e dança acreditando que, em retribuição, Deus atenderá aos seus pedidos e mudará as leis do Universo em seu favor. Ainda que ocorram eventualmente coincidências probabilísticas entre as orações e rituais e o alcance do que se pretendia na barganha, temos inúmeras situações onde esta coincidência não ocorre, e é quando o religioso justifica o fracasso com a máxima de que "Deus não quis", ou "Deus age por caminhos misteriosos", "O Demônio interferiu" ou ainda "Estou fraco na fé, preciso orar mais".
Recusa-se, o religioso, a confrontar todos os casos em que a fé religiosa funciona (como efeito placebo) para suas angústias e dores com os igualmente numerosos casos em que isto não ocorre; e com todos os outros casos em que a fé não atua nos fatores externos a ele: por mais que ore, jejue e seja um bom religioso, nada muda em suas conquistas de ordem prática, na ocorrência de acidentes, violências e doenças, na sua vida profissional e etc. Mas, quando algo de bom acontece nesse âmbito, o religioso não hesita: Foi Deus que quis! A oração funcionou! Deus se importa comigo e ouviu o meu clamor! Caso a fé religiosa tivesse algum efeito na vida dos seus praticantes além da eventualidade do efeito placebo, teríamos inevitavelmente que religiosos deveriam ser menos atingidos em epidemias, tragédias, catástrofes naturais ou doenças congênitas e más formações fetais; estariam mais protegidos de atos de violência, de acidentes e de qualquer evento negativo aleatório, como a morte súbita, por exemplo. Então, por que os seres humanos ainda creem em um deus, apesar de todas as evidências científicas de que nada no mundo obedece a uma vontade inteligente que pode favorecer ou desprestigiar os indivíduos, de acordo com o quanto oram, como vivem, como praticam sexo ou como se relacionam com os outros?
Uma das hipóteses para o surgimento da religião é de que ela começou com as tentativas dos primeiros Homo Sapiens Sapiens de entender o mundo, num esforço de raciocínio lógico, embora ainda desaparelhado das ciências e do conhecimento de como a natureza funciona. Nessas tentativas, foi natural que se fizessem correlações entre os eventos naturais aleatórios e a vida do grupo: se alguém faz uma pintura na caverna representando uma caçada bem sucedida e, na caçada seguinte realmente o resultado foi bom, e tendo essa coincidência se repetido, seria lógico para o caçador da Idade da Pedra supor que ambos os eventos estivessem interligados. Se, ao contrário, a caçada foi um fracasso, talvez mesmo com a morte de um dos caçadores, apesar do mesmo desenho ter sido feito, também seria natural que se buscasse a explicação em algo que se fez de diferente naquele dia, ou em alguma forma de retaliação da natureza, como se esta fosse uma entidade antropomórfica, capaz de se zangar ou se alegrar pelo que os humanos faziam, e de retribuir ou puni-los. Uma vez que as coincidências entre os atos humanos e o sucesso ou fracasso nas suas empreitadas estivessem estabelecidas como interdependentes, faria todo o sentido do mundo partir para a tentativa de multiplicar os sucessos e evitar os fracassos.
De forma lógica, os primeiros seres humanos acreditaram que precisavam se relacionar com os fenômenos naturais como se relacionavam entre si, na base da retribuição, do cuidado mútuo, da solidariedade ou da troca de favores; então qualquer ato que antecedesse um dos seus sucessos, como dançar em volta do fogo, desenhar nas paredes das cavernas, se curvar ao Sol pela manhã ou atirar os inimigos na cratera de um vulcão serviria para agradar a Natureza, as entidades desconhecidas que mandavam chuva ou raios e trovões, os monstros marinhos ou as sombras da noite.
Dessa forma, quando estudos indicam que o nosso cérebro evoluiu para crer no sobrenatural, não nos parece tão absurdo assim, nem tão definitivo: os seres humanos mais crédulos e menos curiosos sobre o desconhecido mantinham-se cautelosamente longe de barulhos estranhos, eventos que não entendiam, sons que não conheciam, animais nunca antes vistos; ficavam seguros em suas suposições de que melhor não investigar do que se arriscar e possivelmente perecer; e logo passaram a creditar tais eventos misteriosos a alguma força que os observava e com eles interagia, matando-os caso se arriscassem a investigá-la e recompensando-os com a sobrevivência caso não. Assim também preferiam manter e repetir seus rituais supersticiosos, na crença de que tinham algum poder sobre a natureza, e mesmo quando falhavam, pois contavam que a falha se dava em decorrência de algo que desagradou a Natureza, o Vulcão ou o deus Sol. E se esmeravam nesses rituais, multiplicando-os para tentar aplacar a ira dos eventos que não entendiam, mas que deveriam ser tais e quais como eles, com as mesmas paixões, orgulhos temperamentais e vaidades, já que eles mesmos eram o único exemplo que tinham de uma inteligência superior entre todos os seres vivos. Totalmente lógico, nesse contexto, supor que qualquer ser superior aos seres humanos pensaria e sentiria como eles, só que com mais poderes e compreensões. Foi quando passaram aos deuses antropomórficos, que sucederam os zoomórficos dos seus antepassados ainda não de todo conscientes de que eram Sapiens.   Os fatos ou os indícios de que o cérebro humano evoluiu para crer não são evidências de que exista um deus, mas sim de que a evolução e a seleção natural nos trouxeram nesse caminho, que não é de forma alguma inevitável.
"África, 3 milhões de anos atrás. Um dos nossos ancestrais caminha por uma trilha cercada de arbustos. De repente, ouve um barulho no mato. Pode ser o vento, mas também pode ser um bicho pronto para o bote. Se o hominídeo se apega à segunda possibilidade e corre, mesmo não existindo fera por perto, comete um engano, mas continua vivo. Se, no entanto, atribui o ruído a uma brisa e segue a passos lentos, seus minutos estão contados caso exista um animal à espreita. É a esse exemplo que recorre o psicólogo americano Michael Shermer em seu novo livro, Cérebro e Crença, para sintetizar nossa necessidade biológica e evolutiva em criar e reforçar crenças."[3]
Os seres humanos que hoje continuam crendo em deuses e eventos sobrenaturais estão, na verdade, reproduzindo fórmulas de entendimento do mundo que de há muito tempo já foram refutadas ou elucidadas pelas ciências de forma inequívoca.
As tradições das práticas e da fé religiosas ainda trazem a sensação de algum controle sobre os eventos naturais, de algum relacionamento especial com um ser superior, a partir do qual se tem alguma segurança contra as ocorrências aleatórias que nos fazem sofrer diariamente e ao longo de toda a nossa vida. A natureza, sob a ótica dos religiosos, foi criada pronta, por Deus, sem retoques, e com apenas um objetivo: servir-nos.
Mas há regras, é claro! Exatamente como os homens primitivos, os religiosos de hoje continuam barganhando com o ser supremo criador de todo o Universo em troca de uma boa caçada, de um abrigo contra o clima, ou contra a verdade irrefutável de que tudo acabará em breve, para qualquer ser vivo. A morte, o fim de tudo, o sumir da existência é o primeiro medo de todos os animais, um medo instintivo que o faz lutar para sobreviver desde o nascimento. Diante de uma morte sem motivo aparente (uma doença, uma picada de um animal desconhecido, um esforço físico enorme ou períodos longos sem dormir ou sem comer e beber água), conjecturavam sobre o significado daquilo, quedavam-se pasmados e, quem sabe até sonhassem com o morto, vendo-o vivo e bem, de forma que lhes parecia muito vívida e real.
Os sonhos são uma das funções cerebrais para a consolidação das memórias, mas é claro que os primeiros Sapiens não podiam saber disso e a eles parecia natural acreditar que os mortos estariam vivos em algum outro lugar, e se comunicavam com os vivos através do onírico. Assim também as pareidolias que lhes fazia ver o rosto de um falecido nas nuvens ou nas manchas no chão, as coincidências entre um sonho com ele e uma ótima caçada, entre outras possíveis ocorrências, desembocaram na conclusão de que a morte não é o fim da vida e que esta deve continuar de alguma forma, em outro ambiente. Cogitar numa continuação da vida após o corpo deixar de funcionar é (novamente) totalmente lógico em se tratando de seres humanos ainda na infância tecnológica e científica, uma vez que não entendiam a morte e suas causas; mas não se justifica nos dias atuais, quando a ciência já esclareceu os vários fatores que nos levam à morte, e nenhuma deles foi um suposto pecado original. Relatos de ocorrências de comunicação com os mortos através de sonhos, orações, visões e outros que tais são ainda comuns hoje em dia, porém há explicações perfeitamente racionais e científicas sem a necessidade de interferência sobrenatural ou divina. Quando tantas e tão vastas pesquisas foram e são feitas sobre EQM - Experiências de quase morte, sobre aparições de espíritos, sobre interferência dos astros na personalidade humana, sobre como a Terra se formou e sobre as várias formas de vida que já a habitaram e habitam, não há razão alguma para que se mantenha a crença na vida após a morte, senão a tradição, o condicionamento familiar e social, a superstição e o medo irracional da terrível possibilidade de Deus existir e te castigar para sempre por não crer nele.
Nenhuma dessas pesquisas comprova os textos sagrados de nenhuma religião (vale ressaltar que tais pesquisas seguem o método científico, o mesmo conjunto de regras que garantem o funcionamento da Medicina e de toda a aparelhagem tecnológica de que dispomos hoje). Ao contrário, em se tratando da Bíblia, todas as afirmações pretensamente de um deus onisciente e criador de tudo se mostraram equivocadas cientifica e historicamente. O deus bíblico erra em Astronomia, em Biologia, em Geologia, em Medicina, em Ciência Naval, em Ética, em Humanismo e em tudo o mais.
O ateísmo vai de encontro a essa possível característica evolutiva cerebral, da mesma forma que o vegetarianismo vai de encontro aos hábitos onívoros evolutivos de nossos antepassados, assim como a medicina vai de encontro à hereditariedade, corrigindo doenças congênitas. Não é por que algo pode ser evolutivo que seja definitivo e válido, e que não deva ser combatido ou corrigido. Uma característica evolutiva não é necessariamente benéfica para todo o sempre nem em qualquer ambiente ou status quo, mas apenas facilitadora da adaptação ao meio em um período específico. Negar a própria natureza não é, de por si, negativo, quando essa negação é baseada na não necessidade desse aspecto e mesmo na irracionalidade dele. Em sendo a crença mística a natureza do ser humano e hoje a responsável por tantos males sociais quanto éticos, esta natureza deve e precisa ser negada e ultrapassada. Não vivemos mais em grupos tribais, em meio ao desconhecido e ao medo constante de sucumbir diante das feras ou de doenças misteriosas.
Quando o meio era hostil aos seres humanos, mais seguro seria ser supersticioso, logo, a crença nas superstições nos foi repassada pelos nossos antepassados. Mas o mundo mudou, as mentalidades mudaram, o método científico nos mostrou que não é mais necessário especular e contar com as coincidências, mas que é possível investigar as causas e as consequências dos eventos e fenômenos, explicá-los, compreendê-los e, se for o caso, combatê-los.
Hoje, a humanidade não precisa mais de um Pai Supremo para a curar, proteger ou dominar. Não há mais necessidade alguma de buscar explicações sobrenaturais para os eventos naturais, para as doenças ou para a morte. Nem há necessidade de se agradar a alguma divindade que, em tudo e por tudo, não faz a menor diferença em nossas vidas, já que é intangível, inoperante e ineficiente para resolver os problemas que a ciência se esforça por solucionar e soluciona, um por um, na medida em que avança em investigações e aquisição de conhecimentos.
A humanidade está entrando na maturidade cerebral, em que uma possível tendência a crer no sobrenatural não é mais facilitadora da sobrevivência. Não, apenas promove a alienação da realidade e do usufruto da vida plena, o bloqueio das funções racionais do cérebro, o afastamento dos grupos humanos entre si, o preconceito e a dominação de uma crença sobre outra e dessas sobre os não crentes.
"Você é ateu? Pode estar negando a sua própria natureza. O cérebro nasce programado para acreditar em algum tipo de deus, e a fé não é opção pessoal nem chamado divino: é uma tendência biológica, que se desenvolveu ao longo de milhares de anos de evolução. Essa ideia, que desagrada a crentes e ateus e é uma das teorias mais polêmicas entre os cientistas, parece ter sido finalmente comprovada por um novo estudo, realizado por pesquisadores do Instituto de Saúde dos EUA (NIH).”[4]
O caminho da maturidade humana é a abolição de qualquer conceito místico, sobrenatural ou religioso, segregacionista e baseado em salvos e não salvos, em favor dos conceitos científicos que nos provam que somos todos iguais, irmanados pela universalidade do código genético, pelo parentesco total e inequívoco dos seres humanos uns com os outros e com todas as formas de vida neste planeta.
O ateísmo é uma das consequências do desenvolvimento científico, da democratização de seus frutos e da mudança das mentalidades por ele provocado. A ciência nos prova, pois funciona, que o conceito de um deus não é condizente com o funcionamento do mundo nem com a separação e dominação dos seres humanos uns sobre os outros baseados em diferenças de tradição religiosa ou em qualquer outro preceito que alegue superioridade e inferioridade.
Como negar a irmandade genética? A ciência nos prova que somos todos produtos dos mesmos eventos, com a mesma origem e funcionalidades, e com o mesmo fim. A vida é um processo natural e a consciência de que estamos vivos e de que vamos inevitavelmente morrer, mas que, enquanto estivermos aqui estaremos lutando para permanecer é a prova de que somos mais do que um projeto de uma inteligência pervertida, que teria nos criado para adorá-la nessa vida e numa vida imaginária após a morte. O ser humano é mais do que um boneco criado para adorar a um ser superior. A vida humana é mais do que isso. É em si mesmo, um evento que merece ser vivenciado de forma plena em todos os seus aspectos.
Somos seres vivos! Conscientes, inteligentes, capazes de feitos tão assombrosos quanto enviar uma sonda robô a outro planeta e aos limites do Sistema Solar.

3 comentários:

  1. Sempre procurei por um post assim, e finalmente achei.
    Melhor post que já vi, obrigado por fazer algo assim.
    Foi cansativo de ler todo o texto mas valeu a pena...

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  2. Na era das viagens espaciais, do motor de dobras, ainda existem pessoas que creem em um deus que tudo pode, que castiga, mata e pode te mandar para um inferno criado por ele mesmo isso e inconcebivel...

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