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The Night of Enitharmon's Joy - Willian Blake |
*Trecho do Resumo de Um Tratado
da Natureza Humana[1]
David Hume
O célebre Sr.
Leibniz observou que é um defeito dos habituais sistemas da lógica a
prolixidade quando explicam as operações do entendimento, na formulação de
demonstrações; mas são demasiado concisos quando tratam das probabilidades e
daqueles outros padrões de evidência dos quais a vida e a ação dependem inteiramente,
e que são nossos guias até mesmo na maior parte de nossas especulações filosóficas.
Nessa censura, engloba o ensaio sobre o entendimento humano, la recherche de la vérité et
l'art de penser. O autor do tratado da natureza humana parece
ter percebido este defeito de tais filósofos e dedicou-se, tanto quanto lhe foi
possível, a supri-lo. Como seu livro contém um grande número de especulações muito
novas e dignas de nota, será impossível dar ao leitor uma justa noção do todo.
Por isso, limitar-nos-emos principalmente à sua explicação de nossos raciocínios
sobre causa e efeito. Se conseguirmos tomá-la inteligível ao leitor, poderá servir
como uma amostra do conjunto.
Nosso autor começa
com algumas definições. Chama percepção o que quer que se apresente
à mente, quer empreguemos nossos sentidos, sejamos movidos pela paixão, ou
exercitemos nosso pensamento e reflexão.
Divide nossas percepções em duas espécies, a saber, impressões e ideias.
Quando sentimos qualquer tipo de paixão ou emoção, ou captamos as imagens
de objetos externos trazidas por nossos sentidos, a percepção da mente é o que
ele chama impressão, palavra empregada por ele em um novo sentido Quando
refletimos sobre uma paixão, ou um objeto que não está presente, esta percepção
é uma ideia. As impressões são, portanto, nossas percepções vívidas e
fortes; as ideias são percepções mais esmaecidas e fracas. Essa distinção
é evidente; tão evidente como a distinção entre sentir e pensar.
A primeira
proposição que ele adianta é que todas as nossas ideias, ou percepções fracas,
derivam de nossas impressões, ou percepções fortes, e que jamais podemos pensar
em qualquer coisa que não tenhamos visto fora de nós, ou sentido em nossas
próprias mentes. Essa proposição parece equivalente àquela que o Sr. Locke tanto
se esforçou em demonstrar, segundo a qual não existem ideias inatas. Todavia,
podemos observar, como uma imprecisão daquele famoso filósofo, o abranger todas
as nossas percepções sob o termo ideia, nesse sentido sendo falso afirmar que
não temos ideias inatas. Pois é evidente que nossas mais fortes
percepções ou impressões são inatas, e que a afeição natural, o amor da
virtude, o ressentimento e todas as outras paixões, brotam imediatamente da
natureza. Estou persuadido de que se alguém examinasse a questão sob essa luz,
seria capaz de reconciliar todas as correntes. O Padre Malebranche teria
muita dificuldade em apontar qualquer pensamento da mente que não representasse
algo precedentemente sentido por ela, fosse internamente, ou por meio dos sentidos
externos, e deveria admitir que, embora possamos compor, misturar, aumentar ou
diminuir nossas ideias, todas elas derivam dessas fontes. O Sr. Locke, por
outro lado, reconheceria prontamente que todas as nossas paixões são uma espécie
de instintos naturais derivados apenas da constituição original da mente humana.
Nosso autor
pensa "que nenhuma descoberta poderia ter sido mais feliz, para decidir
todas as controvérsias concernentes às ideias, do que esta de que as impressões
sempre as antecedem, e que toda ideia que preenche a imaginação, faz antes sua
aparição em uma impressão correspondente. Essas últimas percepções são todas
tão claras e evidentes que não admitem controvérsia; embora muitas de nossas ideias
sejam tão obscuras que é quase impossível, até para a mente, que as forma, dizer
exatamente sua natureza e composição". Consequentemente, toda vez que uma
ideia é ambígua, o autor pode recorrer à impressão, que a tornará clara e precisa.
E quando suspeita (o que é tão comum) que determinado teimo filosófico não se
vincula a nenhuma ideia, pergunta sempre: de que impressão deriva tal ideia?
E se impressão alguma pode ser encontrada, conclui que o teimo é
absolutamente insignificante; e seria de desejar que esse método rigoroso fosse
aplicado com mais frequência em todos os debates filosóficos.
É evidente que
todos os raciocínios a respeito da realidade se fundam na relação de
causa e efeito, e que nunca podemos inferir a existência de um objeto de outro
objeto, a menos que estejam interligados mediata ou imediatamente. Para compreender
estes raciocínios, portanto, devemos olhar à nossa volta para encontrar alguma
coisa que seja a causa de outra.
Eis uma bola de
bilhar pousada sobre a mesa, e outra que se move na direção da primeira, com
rapidez. As bolas se chocam; e a que antes se encontrava em repouso adquire
agora um movimento. Este é um exemplo tão perfeito da relação de causa e efeito
como qualquer outro conhecido, seja pela sensação ou pela reflexão. Examinemo-lo,
pois. É evidente que as duas bolas se tocaram antes que o movimento tivesse se
comunicado, e que não houve intervalo entre o choque e o movimento. Contiguidade
no tempo e no espaço é, portanto, unia circunstância requerida à operação
de todas as causas. É igualmente evidente que o movimento que foi a causa, é
anterior ao movimento que foi o efeito. Prioridade no tempo é, portanto,
outra circunstância requerida em qualquer causa. Mas isso não é tudo. Se
experimentarmos quaisquer outras bolas do mesmo tipo, em situação semelhante,
verificaremos sempre que o impulso de uma produz movimento na outra. Eis,
então, uma terceira circunstância, isto é, a da conjunção constante entre
a causa e o efeito. Todo objeto como causa produz sempre algum objeto como
efeito. Além dessas três circunstâncias: contiguidade, prioridade e conjunção constante,
não há nada que eu possa descobrir nessa causa. A primeira bola está em
movimento; encosta na segunda; imediatamente, a segunda entra em movimento. E
quando faço a experiência com a mesma bola, ou com outras semelhantes, em
circunstâncias idênticas ou semelhantes, verifico que a partir do movimento e
toque de uma bola, segue-se sempre um movimento da outra. Não posso encontrar
nada além disso, por mais que examine a questão sob vários pontos de vista.
Esse é o caso
quando tanto a causa quanto o efeito estão presentes aos sentidos. Vejamos,
agora, em que se funda nossa inferência, quando deduzimos de um que o outro
ocorreu ou irá ocorrer. Suponhamos que vejo uma bola movendo-se, em linha reta,
em direção a outra; imediatamente concluo que vão entrar em choque, e que a
segunda adquirirá movimento. Essa é a inferência de causa a efeito; e dessa
natureza são todos os nossos raciocínios na conduta da vida. Nisto se funda
toda a nossa crença na história, e daí deriva toda a filosofia, excetuando-se apenas
a geometria e a aritmética. Se pudermos explicar a inferência a partir do choque
de duas bolas, seremos capazes de dar conta desta operação da mente em qualquer
caso.
Se um homem
fosse criado, como Adão, no pleno vigor do entendimento, sem
experiência, jamais seria capaz de inferir o movimento da segunda bola, a partir
do movimento e impulso da primeira. Não é algo que a razão enxergue na causa que
nos faz inferir o efeito. Tal inferência, se fosse possível, equivaleria
a uma demonstração, fundada meramente na comparação de ideias. Mas nenhuma
inferência de causa a efeito equivale a uma demonstração. Disto temos uma prova
evidente. A mente sempre pode conceber qualquer efeito seguindo-se a
qualquer causa e, na verdade, qualquer acontecimento seguindo-se a outro. O que
quer que concebamos é possível, ao menos num sentido metafísico, mas
onde ocorre uma demonstração, o contrário é impossível, e implica contradição.
Não há nenhuma demonstração, pois, para qualquer conjunção de causa e efeito. E
esse é um princípio geralmente admitido pelos filósofos.
Teria sido
necessário, portanto, a Adão, (se não fosse inspirado) ter tido a experiência
do efeito que se
seguiu ao impulso das duas bolas. Precisaria ter visto, em várias ocasiões, que
quando uma das bolas batia na outra, a segunda sempre adquiria movimento. Se
tivesse presenciado um número suficiente de casos desse tipo, quando visse o
movimento de uma bola em direção à outra, concluiria sempre, sem hesitação, que
a segunda se movimentaria. Seu entendimento se anteciparia à sua visão, e
formaria uma conclusão ajustada à sua experiência passada.
Segue-se que
todos os raciocínios relativos a causa e efeito são fundados na experiência, e
que todos os raciocínios advindos da experiência são fundados no pressuposto de
que o curso da natureza continuará uniformemente o mesmo. Concluímos que causas
semelhantes, em semelhantes circunstâncias, produzirão sempre efeitos
semelhantes. Vale agora considerar o que nos determina a tirar uma conclusão de
tão infinita consequência.
É evidente que
Adão, com toda a sua ciência, jamais teria sido capaz de demonstrar que
o curso da natureza deve continuar uniformemente o mesmo, e que o futuro deve
ser conforme ao passado. O que é possível nunca pode ser demonstrado como
falso; e é possível que o comportamento da natureza possa mudar, uma vez que podemos
conceber tal modificação. Não é só isto; irei além e afirmarei que Adão não
conseguiria provar, por quaisquer argumentos prováveis, que o futuro
deve ser conforme ao passado. Todos os argumentos prováveis são construídos sobre
a suposição de que há esta conformidade entre o futuro e o passado, e, por
conseguinte, nunca podem provar tal suposição. Tal conformidade é uma questão
de fato, e se deve ser provada, só admitirá prova que resulte da
experiência. Mas nossa experiência no passado nada pode provar para o futuro,
senão na suposição de haver semelhança entre um e outro. Esse é um ponto, pois,
que absolutamente pode ser comprovado e que assumimos como certo sem qualquer
prova.
Somos
determinados exclusivamente pelo HÁBITO a supor o futuro conforme ao passado.
Quando vejo uma bola de bilhar movendo-se em direção a outra, minha mente é imediatamente
levada pelo hábito ao efeito costumeiro, e antecipa minha visão, concebendo a
segunda bola em movimento. Nada há, nesses objetos, considerados abstrata e independentemente
da experiência, que me leve a tal conclusão. E mesmo depois de eu ter tido a
experiência de muitos efeitos dessa espécie, nenhum argumento me determina a supor
que o efeito será conforme a experiência passada. As forças pelas quais tais os
corpos agem são inteiramente desconhecidas. Percebemos apenas suas qualidades
sensíveis: e que razão temos para pensar que as mesmas forças hão de aparecer
sempre unidas às mesmas qualidades sensíveis?
Não é, pois, a
razão que conduz a vida, mas o hábito. Apenas ele determina a mente, em todas
as circunstâncias, a supor que o futuro é conforme ao passado. Por mais simples
que este passo possa parecer, nem em toda a eternidade a razão seria capaz de
dá-lo.
Essa é uma
descoberta muito curiosa, mas nos leva a outras mais curiosas ainda. Quando
vejo uma bola de bilhar movendo-se em direção a outra, minha mente é
imediatamente levada pelo hábito ao efeito costumeiro e antecipa minha visão concebendo
a segunda bola em movimento. Mas isso será tudo? Não faço senão
CONCEBER o movimento da segunda bola? Certamente que não. Também ACREDITO que
ela vai se mover. Que é, pois, essa crença? E como se distingue da
simples concepção de qualquer coisa? Eis uma nova questão não pensada pelos
filósofos.
Quando uma
demonstração me convence da validade de uma proposição, não apenas me faz
conceber a proposição, mas também me dá consciência de que é impossível conceber
algo contrário. O que é demonstrativamente falso implica contradição; e o que
implica contradição é inconcebível. Todavia, no que diz respeito a uma questão
de fato, não importa quão forte possa ser a prova obtida por meio da
experiência, posso sempre conceber o contrário, embora nem sempre possa
acreditar nele. A crença, portanto, estabelece certa diferença entre a
concepção a que assentimos e aquela a que não assentimos.
Para explicar
esta questão, há somente duas hipóteses. Pode-se dizer que a crença acrescenta
uma ideia nova àquelas que podemos conceber sem lhes dar nosso assentimento.
Mas essa hipótese é falsa. Em primeiro lugar, porque tal ideia não pode
ser produzida. Quando simplesmente concebemos um objeto, concebemo-lo em todas
as suas partes. Concebemo-lo como poderia existir, embora não acreditemos que
exista. Nossa crença nele não descobriria nenhuma nova qualidade. Podemos
representar o objeto inteiro na imaginação, sena acreditar nele. Podemos colocá-lo,
de certo modo, diante de nossos olhos, com todas as circunstâncias de tempo e
espaço. É o próprio objeto concebido tal como poderia existir, e quando cremos não
podemos fazer nada além disso.
Em segundo
lugar, a mente tem a faculdade de unir todas as ideias que não envolvem
contradição; e, por isso, se a crença consistisse em alguma ideia que acrescentássemos
à simples concepção, estaria no poder do homem, ao acrescentar-lhe tal ideia,
crer em qualquer coisa que pudesse conceber.
Uma vez, pois,
que a crença implica uma concepção, e ainda é algo mais, e uma vez que não
acrescenta nenhuma ideia nova à concepção, segue-se que se trata de um MODO
diferente de conceber um objeto; algo que se pode distinguir do sentir,
e que não depende de nossa vontade, como ocorre com todas as nossas ideias.
Minha mente, por hábito, corre do objeto visível de uma bola movendo-se em
direção a outra, para o efeito usual do movimento na segunda bola. Não apenas
concebe tal movimento, mas sente na sua concepção algo que difere de um
simples devaneio da imaginação. A presença desse objeto visível e a conjunção constante
daquele efeito específico tornam a ideia, em relação ao sentir, diferente
daquelas ideias vagas que vêm à mente sem nenhuma introdução. Essa conclusão parece
um tanto surpreendente; mas somos levados a ela por uma cadeia de proposições
que não admitem dúvidas. Para ajudar a memória do leitor, vou resumi-las brevemente.
Nenhuma questão de fato pode ser provada senão a partir de sua causa ou de seu
efeito. Nada pode ser conhecido como sendo causa de outra coisa senão pela
experiência. Não podemos apresentar razão alguma para estender ao futuro nossa experiência
do passado; mas somos inteiramente determinados pelo costume quando concebemos
um efeito seguindo-se a sua causa habitual. Mas também cremos que um efeito se
segue ao mesmo tempo em que o concebemos. Tal crença não acrescenta nenhuma
ideia nova à concepção. Apenas modifica a maneira de conceber e produz uma
diferença para a sensibilidade ou sentimento. A crença, portanto, em todas as questões
de fato, brota apenas do costume, e é uma ideia concebida de um modo peculiar.
Nosso autor
passa a explicar o modo ou o sentir que torna a crença diferente de uma
concepção vaga. Parece reconhecer que é impossível descrever com palavras este
sentir, de que cada um deve se conscientizar no seu íntimo. Chama-o às vezes de
concepção mais forte, e outras vezes de mais vívida, mais animada,
mais firme, ou mais intensa. De fato, não importa o nome que dermos
a tal sentir que constitui a crença, nosso autor julga evidente que ele produz
na mente um efeito mais enérgico do que a ficção ou a mera concepção. Prova-o
pela influência que exerce sobre as paixões e a imaginação; que só são movidas
pela verdade ou pelo que se toma como verdade. A poesia, com toda a sua arte,
jamais pode causar uma paixão, como as da vida real. Falha na concepção original
de seus objetos, que nunca se fazem sentir do mesmo modo que aqueles que
comandam nossa crença e opinião.
Nosso autor,
presumindo ter provado suficientemente que as ideias às quais assentimos são
diferentes das outras, e que este sentir é mais firme e vivo do que nossas concepções
comuns procuram, a seguir, explicar a causa deste vivo sentimento, por meio de
uma analogia com outros atos da mente. Seu raciocínio parece curioso; mas dificilmente
se tomaria inteligível, ou ao menos provável para o leitor, sem uma longa e
detalhada explanação, o que excederia os limites que me impus.
Omiti
igualmente muitos argumentos que ele aduz
para provar que a crença consiste meramente num tipo peculiar de sentir ou
sentimento. Mencionarei apenas um: nossa experiência passada nem sempre é uniforme.
Algumas vezes um efeito se segue a uma causa, outras vezes, outro. Nesse caso,
sempre acreditamos que ocorrerá o mais comum. Vejo uma bola de bilhar movendo-se
em direção a outra. Não posso distinguir se se move sobre seu eixo ou se foi
batida para deslizar sobre a mesa. No primeiro caso, sei que não irá parar
depois do choque; no segundo, pode parar. O primeiro caso é mais comum, por
isso apoio meu cálculo sobre esse efeito. Mas também concebo o outro efeito, e
o concebo como possível e em conexão com a causa. Se uma concepção não fosse
diferente da outra, no que diz respeito ao sentir ou sentimento, não haveria nenhuma diferença
entre elas.
Restringimo-nos,
em todo esse raciocínio, à relação de causa e efeito, descoberta nos movimentos
e operações da matéria. Mas o mesmo raciocínio se estende às operações da
mente. Quer consideremos a influência da vontade no movimento do nosso corpo,
ou no controle do nosso pensamento, pode-se afirmar com segurança que jamais
conseguimos predizer o efeito, pela mera consideração da causa, sem a experiência.
E mesmo depois de termos a experiência desses efeitos, é o hábito apenas, não a
razão, que nos determina a fazer deles o padrão de nossos futuros julgamentos. Quando
a causa está presente, a mente, pelo hábito, passa imediatamente à concepção e
crença no efeito costumeiro. Essa crença é algo diferente da concepção. Não lhe acrescenta, no entanto,
nenhuma ideia nova. Apenas nos faz senti-la diferentemente, tornando-a mais
forte e mais viva.
Tendo esgotado
esse ponto importante concernente à natureza da inferência de causa e efeito,
nosso autor retorna sobre seus passos e reexamina a ideia dessa relação. Ao considerar
o movimento transmitido de uma bola para a outra, só pudemos encontrar contiguidade,
prioridade na causa e conjunção constante. Todavia, além dessas circunstâncias,
supõe-se comumente que existe uma conexão necessária entre causa e efeito, e
que a causa possui algo que chamamos poder, ou força, ou energia. A
questão é a seguinte: que ideia se vincula a esses termos? Se todas as nossas ideias
ou pensamentos derivam de nossas impressões, tal força deve revelar-se ou aos
nossos sentidos ou ao nosso sentimento interior. Mas os sentidos percebem tão
precariamente qualquer poder nas operações da matéria, que os cartesianos
não tiveram nenhum escrúpulo em afirmar que a matéria é totalmente
desprovida de energia, e que todas as suas operações são realizadas meramente
pela energia dó Ser supremo. Entretanto, a questão volta mais uma vez: Que ideia
temos de energia, ou poder, mesmo no Ser supremo? Toda a nossa ideia
de uma Divindade, (de acordo com aqueles que negam as ideias inatas), não passa
de uma composição daquelas ideias adquiridas a partir da reflexão sobre as
operações de nossas próprias mentes. Ora, nossas mentes não nos dão maior noção
de energia do que nos dá a matéria. Quando consideramos nossa vontade, ou
volição, a priori, abstraída a experiência, não somos capazes de inferir
daí qualquer efeito. E quando recorremos à experiência, ela nos mostra apenas
objetos contíguos, sucessivos e constantemente reunidos. Afinal, pois, ou não
temos ideia alguma de força e energia, e essas palavras são de todo sem
significação, ou nada querem dizer além da determinação do pensamento,
adquirida pelo hábito, de passar da causa ao seu efeito usual. Todavia, quem
quiser compreender essa questão perfeitamente, deve consultar o próprio autor.
É suficiente que eu consiga fazer o mundo culto captar que existe no caso certa
dificuldade, e quem a resolver tem algo novo e extraordinário a dizer, tão novo
quanto à própria dificuldade.
Por tudo o que
foi dito, o leitor perceberá facilmente que a filosofia contida neste livro é
muito cética, e tende a nos dar uma noção das imperfeições e dos estreitos limites
do entendimento humano. Quase todos os raciocínios são aí reduzidos à
experiência; e a crença, que acompanha a experiência, é explicada como não
sendo senão um sentimento peculiar, ou uma vívida concepção produzida pelo
hábito. E isso não é tudo; quando acreditamos em algo da existência externa,
ou supomos que um objeto existe no momento posterior ao da percepção, essa
crença não passa de um sentimento da mesma espécie. Nosso autor insiste em
vários outros tópicos céticos; e acaba, em suma, por concluir que assentimos às
nossas faculdades e empregamos nossa razão simplesmente por não sermos capazes
de evitá-lo. A filosofia nos tornaria totalmente pirronianos, não fosse
a natureza demasiado forte para isto.
Concluirei
a lógica desse autor, com o relato de duas opiniões que parecem ser-lhe peculiares,
como, de resto, o são a maioria de suas opiniões. Afirma que a alma, até onde
somos capazes de concebê-la, não passa de um sistema, ou sucessão de diferentes
percepções, as de calor e de frio, amor e ira, pensamentos e sensações, tudo
interligado, mas sem nenhuma simplicidade perfeita ou identidade. Descartes sustentava
que o pensamento é a essência da mente; não este ou aquele pensamento, mas o
pensamento em geral: e, portanto, devem ser nossas várias percepções
particulares que compõem a mente. Digo compõem a mente, e não pertencem
a ela. A mente não é uma substância na qual as percepções são inerentes.
Essa noção é tão ininteligível quanto a cartesiana, segundo a qual o
pensamento, ou a percepção em geral, é a essência da mente. Não temos nenhuma
ideia de substância, de qualquer espécie, uma vez que não temos nenhuma ideia
que não derive de alguma impressão, e não temos nenhuma impressão de qualquer substância,
seja material ou espiritual. Nada conhecemos além de qualidades particulares e
percepções. Como nossa ideia de qualquer corpo, um pêssego, por exemplo, é
somente a de um gosto particular, cor, forma, tamanho, consistência, etc.
Assim, nossa ideia de mente é apenas a de percepções específicas, sem a noção de
nada que chamamos substância, seja simples ou composta.
O segundo
princípio que me propus observar diz respeito à Geometria. Tendo negado a
divisibilidade infinita da extensão, nosso autor sente-se obrigado a refutar aqueles
argumentos matemáticos apresentados a favor daquela tese; tais argumentos, de
fato, são os únicos que têm algum peso. Para refutá-los, nega que a Geometria
seja uma ciência suficientemente exata para admitir conclusões tão sutis como
as que dizem respeito à divisibilidade infinita. Seus argumentos podem ser expostos
assim: toda a Geometria está fundada nas noções de igualdade e desigualdade, e
logo, a própria ciência terá menor ou maior exatidão, conforme tivermos ou não
um padrão mais ou menos exato dessa relação. Ora, existe um padrão exato de igualdade,
supondo-se que a quantidade é composta de pontos indivisíveis. Duas linhas são
iguais quando os números de pontos que as compõem são iguais, e quando cada
ponto de uma corresponde a cada ponto da outra. Mas, mesmo que esse padrão seja
exato, é inútil, pois jamais conseguimos contar o número de pontos em nenhuma
linha. Além disso, isto se funda na suposição da divisibilidade finita, e,
portanto, não pode fornecer qualquer conclusão contra ela. Se rejeitarmos esse padrão
de igualdade, não temos outro que possua quaisquer pretensões de exatidão. Posso
exemplificar com dois padrões comumente usados. Duas linhas sobre unia jarda, por
exemplo, são consideradas iguais quando contém qualquer quantidade inferior, como
uma polegada, o mesmo número de vezes. Mas isso é um círculo vicioso. Pois a
quantidade que chamamos de polegada, em uma das linhas, é supostamente igual
à que chamamos de polegada na outra. E a questão ainda é: por qual padrão
procedemos quando as julgamos iguais: ou, com outras palavras, que queremos dizer
quando dizemos que elas são iguais. Se tomarmos quantidades ainda menores,
seguiremos assim in infinitum. Logo, não é nenhum padrão de igualdade. Os
filósofos, em sua maioria, quando perguntados sobre o que entendem por
igualdade, respondem que a palavra não admite definições, e que basta colocar
diante de nós dois corpos iguais, tais como dois diâmetros de um círculo, para
fazer-nos entender esse termo. Ora, isso é tomar a aparência geral dos
objetos como padrão dessa proporção, e entregar à nossa imaginação e aos nossos
sentidos o último julgamento sobre ela. Mas, tal padrão não admite nenhuma
exatidão e não consegue fornecer conclusão contrária à imaginação e aos sentidos.
Se a questão é válida ou não, o mundo dos sábios deverá julgar. Seria certamente
desejável que se descobrisse algum expediente para reconciliar a filosofia com
o senso comum, os quais, no que concerne a questão da divisibilidade infinita, sustentaram
guerras muito cruéis.
[1]
É importante se fazer uma colocação a respeito desta postagem. Este resumo foi
escrito pelo próprio Hume, como forma de chamar atenção ao seu Tratado da
Natureza Humana (1739-40), do primeiro capítulo Sobre o Entendimento. Assim, por vezes será comum ele se referir ao
autor deste resumo como outra pessoa, e não a si próprio.
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