domingo, 29 de dezembro de 2013

Ode ao ceticismo VII - Sobre o Entendimento

The Night of Enitharmon's Joy - Willian Blake

*Trecho do Resumo de Um Tratado da Natureza Humana[1]

David Hume

O célebre Sr. Leibniz observou que é um defeito dos habituais sistemas da lógica a prolixidade quando explicam as operações do entendimento, na formulação de demonstrações; mas são demasiado concisos quando tratam das probabilidades e daqueles outros padrões de evidência dos quais a vida e a ação dependem inteiramente, e que são nossos guias até mesmo na maior parte de nossas especulações filosóficas. Nessa censura, engloba o ensaio sobre o entendimento humano, la recherche de la vérité et l'art de penser. O autor do tratado da natureza humana parece ter percebido este defeito de tais filósofos e dedicou-se, tanto quanto lhe foi possível, a supri-lo. Como seu livro contém um grande número de especulações muito novas e dignas de nota, será impossível dar ao leitor uma justa noção do todo. Por isso, limitar-nos-emos principalmente à sua explicação de nossos raciocínios sobre causa e efeito. Se conseguirmos tomá-la inteligível ao leitor, poderá servir como uma amostra do conjunto.
Nosso autor começa com algumas definições. Chama percepção o que quer que se apresente à mente, quer empreguemos nossos sentidos, sejamos movidos pela paixão, ou exercitemos nosso pensamento e reflexão. Divide nossas percepções em duas espécies, a saber, impressões e ideias. Quando sentimos qualquer tipo de paixão ou emoção, ou captamos as imagens de objetos externos trazidas por nossos sentidos, a percepção da mente é o que ele chama impressão, palavra empregada por ele em um novo sentido Quando refletimos sobre uma paixão, ou um objeto que não está presente, esta percepção é uma ideia. As impressões são, portanto, nossas percepções vívidas e fortes; as ideias são percepções mais esmaecidas e fracas. Essa distinção é evidente; tão evidente como a distinção entre sentir e pensar.
A primeira proposição que ele adianta é que todas as nossas ideias, ou percepções fracas, derivam de nossas impressões, ou percepções fortes, e que jamais podemos pensar em qualquer coisa que não tenhamos visto fora de nós, ou sentido em nossas próprias mentes. Essa proposição parece equivalente àquela que o Sr. Locke tanto se esforçou em demonstrar, segundo a qual não existem ideias inatas. Todavia, podemos observar, como uma imprecisão daquele famoso filósofo, o abranger todas as nossas percepções sob o termo ideia, nesse sentido sendo falso afirmar que não temos ideias inatas. Pois é evidente que nossas mais fortes percepções ou impressões são inatas, e que a afeição natural, o amor da virtude, o ressentimento e todas as outras paixões, brotam imediatamente da natureza. Estou persuadido de que se alguém examinasse a questão sob essa luz, seria capaz de reconciliar todas as correntes. O Padre Malebranche teria muita dificuldade em apontar qualquer pensamento da mente que não representasse algo precedentemente sentido por ela, fosse internamente, ou por meio dos sentidos externos, e deveria admitir que, embora possamos compor, misturar, aumentar ou diminuir nossas ideias, todas elas derivam dessas fontes. O Sr. Locke, por outro lado, reconheceria prontamente que todas as nossas paixões são uma espécie de instintos naturais derivados apenas da constituição original da mente humana.
Nosso autor pensa "que nenhuma descoberta poderia ter sido mais feliz, para decidir todas as controvérsias concernentes às ideias, do que esta de que as impressões sempre as antecedem, e que toda ideia que preenche a imaginação, faz antes sua aparição em uma impressão correspondente. Essas últimas percepções são todas tão claras e evidentes que não admitem controvérsia; embora muitas de nossas ideias sejam tão obscuras que é quase impossível, até para a mente, que as forma, dizer exatamente sua natureza e composição". Consequentemente, toda vez que uma ideia é ambígua, o autor pode recorrer à impressão, que a tornará clara e precisa. E quando suspeita (o que é tão comum) que determinado teimo filosófico não se vincula a nenhuma ideia, pergunta sempre: de que impressão deriva tal ideia? E se impressão alguma pode ser encontrada, conclui que o teimo é absolutamente insignificante; e seria de desejar que esse método rigoroso fosse aplicado com mais frequência em todos os debates filosóficos.
É evidente que todos os raciocínios a respeito da realidade se fundam na relação de causa e efeito, e que nunca podemos inferir a existência de um objeto de outro objeto, a menos que estejam interligados mediata ou imediatamente. Para compreender estes raciocínios, portanto, devemos olhar à nossa volta para encontrar alguma coisa que seja a causa de outra.
Eis uma bola de bilhar pousada sobre a mesa, e outra que se move na direção da primeira, com rapidez. As bolas se chocam; e a que antes se encontrava em repouso adquire agora um movimento. Este é um exemplo tão perfeito da relação de causa e efeito como qualquer outro conhecido, seja pela sensação ou pela reflexão. Examinemo-lo, pois. É evidente que as duas bolas se tocaram antes que o movimento tivesse se comunicado, e que não houve intervalo entre o choque e o movimento. Contiguidade no tempo e no espaço é, portanto, unia circunstância requerida à operação de todas as causas. É igualmente evidente que o movimento que foi a causa, é anterior ao movimento que foi o efeito. Prioridade no tempo é, portanto, outra circunstância requerida em qualquer causa. Mas isso não é tudo. Se experimentarmos quaisquer outras bolas do mesmo tipo, em situação semelhante, verificaremos sempre que o impulso de uma produz movimento na outra. Eis, então, uma terceira circunstância, isto é, a da conjunção constante entre a causa e o efeito. Todo objeto como causa produz sempre algum objeto como efeito. Além dessas três circunstâncias: contiguidade, prioridade e conjunção constante, não há nada que eu possa descobrir nessa causa. A primeira bola está em movimento; encosta na segunda; imediatamente, a segunda entra em movimento. E quando faço a experiência com a mesma bola, ou com outras semelhantes, em circunstâncias idênticas ou semelhantes, verifico que a partir do movimento e toque de uma bola, segue-se sempre um movimento da outra. Não posso encontrar nada além disso, por mais que examine a questão sob vários pontos de vista.
Esse é o caso quando tanto a causa quanto o efeito estão presentes aos sentidos. Vejamos, agora, em que se funda nossa inferência, quando deduzimos de um que o outro ocorreu ou irá ocorrer. Suponhamos que vejo uma bola movendo-se, em linha reta, em direção a outra; imediatamente concluo que vão entrar em choque, e que a segunda adquirirá movimento. Essa é a inferência de causa a efeito; e dessa natureza são todos os nossos raciocínios na conduta da vida. Nisto se funda toda a nossa crença na história, e daí deriva toda a filosofia, excetuando-se apenas a geometria e a aritmética. Se pudermos explicar a inferência a partir do choque de duas bolas, seremos capazes de dar conta desta operação da mente em qualquer caso.
Se um homem fosse criado, como Adão, no pleno vigor do entendimento, sem experiência, jamais seria capaz de inferir o movimento da segunda bola, a partir do movimento e impulso da primeira. Não é algo que a razão enxergue na causa que nos faz inferir o efeito. Tal inferência, se fosse possível, equivaleria a uma demonstração, fundada meramente na comparação de ideias. Mas nenhuma inferência de causa a efeito equivale a uma demonstração. Disto temos uma prova evidente. A mente sempre pode conceber qualquer efeito seguindo-se a qualquer causa e, na verdade, qualquer acontecimento seguindo-se a outro. O que quer que concebamos é possível, ao menos num sentido metafísico, mas onde ocorre uma demonstração, o contrário é impossível, e implica contradição. Não há nenhuma demonstração, pois, para qualquer conjunção de causa e efeito. E esse é um princípio geralmente admitido pelos filósofos.
Teria sido necessário, portanto, a Adão, (se não fosse inspirado) ter tido a experiência do efeito que se seguiu ao impulso das duas bolas. Precisaria ter visto, em várias ocasiões, que quando uma das bolas batia na outra, a segunda sempre adquiria movimento. Se tivesse presenciado um número suficiente de casos desse tipo, quando visse o movimento de uma bola em direção à outra, concluiria sempre, sem hesitação, que a segunda se movimentaria. Seu entendimento se anteciparia à sua visão, e formaria uma conclusão ajustada à sua experiência passada.
Segue-se que todos os raciocínios relativos a causa e efeito são fundados na experiência, e que todos os raciocínios advindos da experiência são fundados no pressuposto de que o curso da natureza continuará uniformemente o mesmo. Concluímos que causas semelhantes, em semelhantes circunstâncias, produzirão sempre efeitos semelhantes. Vale agora considerar o que nos determina a tirar uma conclusão de tão infinita consequência.
É evidente que Adão, com toda a sua ciência, jamais teria sido capaz de demonstrar que o curso da natureza deve continuar uniformemente o mesmo, e que o futuro deve ser conforme ao passado. O que é possível nunca pode ser demonstrado como falso; e é possível que o comportamento da natureza possa mudar, uma vez que podemos conceber tal modificação. Não é só isto; irei além e afirmarei que Adão não conseguiria provar, por quaisquer argumentos prováveis, que o futuro deve ser conforme ao passado. Todos os argumentos prováveis são construídos sobre a suposição de que há esta conformidade entre o futuro e o passado, e, por conseguinte, nunca podem provar tal suposição. Tal conformidade é uma questão de fato, e se deve ser provada, só admitirá prova que resulte da experiência. Mas nossa experiência no passado nada pode provar para o futuro, senão na suposição de haver semelhança entre um e outro. Esse é um ponto, pois, que absolutamente pode ser comprovado e que assumimos como certo sem qualquer prova.
Somos determinados exclusivamente pelo HÁBITO a supor o futuro conforme ao passado. Quando vejo uma bola de bilhar movendo-se em direção a outra, minha mente é imediatamente levada pelo hábito ao efeito costumeiro, e antecipa minha visão, concebendo a segunda bola em movimento. Nada há, nesses objetos, considerados abstrata e independentemente da experiência, que me leve a tal conclusão. E mesmo depois de eu ter tido a experiência de muitos efeitos dessa espécie, nenhum argumento me determina a supor que o efeito será conforme a experiência passada. As forças pelas quais tais os corpos agem são inteiramente desconhecidas. Percebemos apenas suas qualidades sensíveis: e que razão temos para pensar que as mesmas forças hão de aparecer sempre unidas às mesmas qualidades sensíveis?
Não é, pois, a razão que conduz a vida, mas o hábito. Apenas ele determina a mente, em todas as circunstâncias, a supor que o futuro é conforme ao passado. Por mais simples que este passo possa parecer, nem em toda a eternidade a razão seria capaz de dá-lo.
Essa é uma descoberta muito curiosa, mas nos leva a outras mais curiosas ainda. Quando vejo uma bola de bilhar movendo-se em direção a outra, minha mente é imediatamente levada pelo hábito ao efeito costumeiro e antecipa minha visão concebendo a segunda bola em movimento. Mas isso será tudo? Não faço senão CONCEBER o movimento da segunda bola? Certamente que não. Também ACREDITO que ela vai se mover. Que é, pois, essa crença? E como se distingue da simples concepção de qualquer coisa? Eis uma nova questão não pensada pelos filósofos.
Quando uma demonstração me convence da validade de uma proposição, não apenas me faz conceber a proposição, mas também me dá consciência de que é impossível conceber algo contrário. O que é demonstrativamente falso implica contradição; e o que implica contradição é inconcebível. Todavia, no que diz respeito a uma questão de fato, não importa quão forte possa ser a prova obtida por meio da experiência, posso sempre conceber o contrário, embora nem sempre possa acreditar nele. A crença, portanto, estabelece certa diferença entre a concepção a que assentimos e aquela a que não assentimos.
Para explicar esta questão, há somente duas hipóteses. Pode-se dizer que a crença acrescenta uma ideia nova àquelas que podemos conceber sem lhes dar nosso assentimento. Mas essa hipótese é falsa. Em primeiro lugar, porque tal ideia não pode ser produzida. Quando simplesmente concebemos um objeto, concebemo-lo em todas as suas partes. Concebemo-lo como poderia existir, embora não acreditemos que exista. Nossa crença nele não descobriria nenhuma nova qualidade. Podemos representar o objeto inteiro na imaginação, sena acreditar nele. Podemos colocá-lo, de certo modo, diante de nossos olhos, com todas as circunstâncias de tempo e espaço. É o próprio objeto concebido tal como poderia existir, e quando cremos não podemos fazer nada além disso.
Em segundo lugar, a mente tem a faculdade de unir todas as ideias que não envolvem contradição; e, por isso, se a crença consistisse em alguma ideia que acrescentássemos à simples concepção, estaria no poder do homem, ao acrescentar-lhe tal ideia, crer em qualquer coisa que pudesse conceber.
Uma vez, pois, que a crença implica uma concepção, e ainda é algo mais, e uma vez que não acrescenta nenhuma ideia nova à concepção, segue-se que se trata de um MODO diferente de conceber um objeto; algo que se pode distinguir do sentir, e que não depende de nossa vontade, como ocorre com todas as nossas ideias. Minha mente, por hábito, corre do objeto visível de uma bola movendo-se em direção a outra, para o efeito usual do movimento na segunda bola. Não apenas concebe tal movimento, mas sente na sua concepção algo que difere de um simples devaneio da imaginação. A presença desse objeto visível e a conjunção constante daquele efeito específico tornam a ideia, em relação ao sentir, diferente daquelas ideias vagas que vêm à mente sem nenhuma introdução. Essa conclusão parece um tanto surpreendente; mas somos levados a ela por uma cadeia de proposições que não admitem dúvidas. Para ajudar a memória do leitor, vou resumi-las brevemente. Nenhuma questão de fato pode ser provada senão a partir de sua causa ou de seu efeito. Nada pode ser conhecido como sendo causa de outra coisa senão pela experiência. Não podemos apresentar razão alguma para estender ao futuro nossa experiência do passado; mas somos inteiramente determinados pelo costume quando concebemos um efeito seguindo-se a sua causa habitual. Mas também cremos que um efeito se segue ao mesmo tempo em que o concebemos. Tal crença não acrescenta nenhuma ideia nova à concepção. Apenas modifica a maneira de conceber e produz uma diferença para a sensibilidade ou sentimento. A crença, portanto, em todas as questões de fato, brota apenas do costume, e é uma ideia concebida de um modo peculiar.
Nosso autor passa a explicar o modo ou o sentir que torna a crença diferente de uma concepção vaga. Parece reconhecer que é impossível descrever com palavras este sentir, de que cada um deve se conscientizar no seu íntimo. Chama-o às vezes de concepção mais forte, e outras vezes de mais vívida, mais animada, mais firme, ou mais intensa. De fato, não importa o nome que dermos a tal sentir que constitui a crença, nosso autor julga evidente que ele produz na mente um efeito mais enérgico do que a ficção ou a mera concepção. Prova-o pela influência que exerce sobre as paixões e a imaginação; que só são movidas pela verdade ou pelo que se toma como verdade. A poesia, com toda a sua arte, jamais pode causar uma paixão, como as da vida real. Falha na concepção original de seus objetos, que nunca se fazem sentir do mesmo modo que aqueles que comandam nossa crença e opinião.
Nosso autor, presumindo ter provado suficientemente que as ideias às quais assentimos são diferentes das outras, e que este sentir é mais firme e vivo do que nossas concepções comuns procuram, a seguir, explicar a causa deste vivo sentimento, por meio de uma analogia com outros atos da mente. Seu raciocínio parece curioso; mas dificilmente se tomaria inteligível, ou ao menos provável para o leitor, sem uma longa e detalhada explanação, o que excederia os limites que me impus.
Omiti igualmente muitos argumentos que ele aduz para provar que a crença consiste meramente num tipo peculiar de sentir ou sentimento. Mencionarei apenas um: nossa experiência passada nem sempre é uniforme. Algumas vezes um efeito se segue a uma causa, outras vezes, outro. Nesse caso, sempre acreditamos que ocorrerá o mais comum. Vejo uma bola de bilhar movendo-se em direção a outra. Não posso distinguir se se move sobre seu eixo ou se foi batida para deslizar sobre a mesa. No primeiro caso, sei que não irá parar depois do choque; no segundo, pode parar. O primeiro caso é mais comum, por isso apoio meu cálculo sobre esse efeito. Mas também concebo o outro efeito, e o concebo como possível e em conexão com a causa. Se uma concepção não fosse diferente da outra, no que diz respeito ao sentir ou sentimento, não haveria nenhuma diferença entre elas.
Restringimo-nos, em todo esse raciocínio, à relação de causa e efeito, descoberta nos movimentos e operações da matéria. Mas o mesmo raciocínio se estende às operações da mente. Quer consideremos a influência da vontade no movimento do nosso corpo, ou no controle do nosso pensamento, pode-se afirmar com segurança que jamais conseguimos predizer o efeito, pela mera consideração da causa, sem a experiência. E mesmo depois de termos a experiência desses efeitos, é o hábito apenas, não a razão, que nos determina a fazer deles o padrão de nossos futuros julgamentos. Quando a causa está presente, a mente, pelo hábito, passa imediatamente à concepção e crença no efeito costumeiro. Essa crença é algo diferente da concepção. Não lhe acrescenta, no entanto, nenhuma ideia nova. Apenas nos faz senti-la diferentemente, tornando-a mais forte e mais viva.
Tendo esgotado esse ponto importante concernente à natureza da inferência de causa e efeito, nosso autor retorna sobre seus passos e reexamina a ideia dessa relação. Ao considerar o movimento transmitido de uma bola para a outra, só pudemos encontrar contiguidade, prioridade na causa e conjunção constante. Todavia, além dessas circunstâncias, supõe-se comumente que existe uma conexão necessária entre causa e efeito, e que a causa possui algo que chamamos poder, ou força, ou energia. A questão é a seguinte: que ideia se vincula a esses termos? Se todas as nossas ideias ou pensamentos derivam de nossas impressões, tal força deve revelar-se ou aos nossos sentidos ou ao nosso sentimento interior. Mas os sentidos percebem tão precariamente qualquer poder nas operações da matéria, que os cartesianos não tiveram nenhum escrúpulo em afirmar que a matéria é totalmente desprovida de energia, e que todas as suas operações são realizadas meramente pela energia dó Ser supremo. Entretanto, a questão volta mais uma vez: Que ideia temos de energia, ou poder, mesmo no Ser supremo? Toda a nossa ideia de uma Divindade, (de acordo com aqueles que negam as ideias inatas), não passa de uma composição daquelas ideias adquiridas a partir da reflexão sobre as operações de nossas próprias mentes. Ora, nossas mentes não nos dão maior noção de energia do que nos dá a matéria. Quando consideramos nossa vontade, ou volição, a priori, abstraída a experiência, não somos capazes de inferir daí qualquer efeito. E quando recorremos à experiência, ela nos mostra apenas objetos contíguos, sucessivos e constantemente reunidos. Afinal, pois, ou não temos ideia alguma de força e energia, e essas palavras são de todo sem significação, ou nada querem dizer além da determinação do pensamento, adquirida pelo hábito, de passar da causa ao seu efeito usual. Todavia, quem quiser compreender essa questão perfeitamente, deve consultar o próprio autor. É suficiente que eu consiga fazer o mundo culto captar que existe no caso certa dificuldade, e quem a resolver tem algo novo e extraordinário a dizer, tão novo quanto à própria dificuldade.
Por tudo o que foi dito, o leitor perceberá facilmente que a filosofia contida neste livro é muito cética, e tende a nos dar uma noção das imperfeições e dos estreitos limites do entendimento humano. Quase todos os raciocínios são aí reduzidos à experiência; e a crença, que acompanha a experiência, é explicada como não sendo senão um sentimento peculiar, ou uma vívida concepção produzida pelo hábito. E isso não é tudo; quando acreditamos em algo da existência externa, ou supomos que um objeto existe no momento posterior ao da percepção, essa crença não passa de um sentimento da mesma espécie. Nosso autor insiste em vários outros tópicos céticos; e acaba, em suma, por concluir que assentimos às nossas faculdades e empregamos nossa razão simplesmente por não sermos capazes de evitá-lo. A filosofia nos tornaria totalmente pirronianos, não fosse a natureza demasiado forte para isto.
Concluirei a lógica desse autor, com o relato de duas opiniões que parecem ser-lhe peculiares, como, de resto, o são a maioria de suas opiniões. Afirma que a alma, até onde somos capazes de concebê-la, não passa de um sistema, ou sucessão de diferentes percepções, as de calor e de frio, amor e ira, pensamentos e sensações, tudo interligado, mas sem nenhuma simplicidade perfeita ou identidade. Descartes sustentava que o pensamento é a essência da mente; não este ou aquele pensamento, mas o pensamento em geral: e, portanto, devem ser nossas várias percepções particulares que compõem a mente. Digo compõem a mente, e não pertencem a ela. A mente não é uma substância na qual as percepções são inerentes. Essa noção é tão ininteligível quanto a cartesiana, segundo a qual o pensamento, ou a percepção em geral, é a essência da mente. Não temos nenhuma ideia de substância, de qualquer espécie, uma vez que não temos nenhuma ideia que não derive de alguma impressão, e não temos nenhuma impressão de qualquer substância, seja material ou espiritual. Nada conhecemos além de qualidades particulares e percepções. Como nossa ideia de qualquer corpo, um pêssego, por exemplo, é somente a de um gosto particular, cor, forma, tamanho, consistência, etc. Assim, nossa ideia de mente é apenas a de percepções específicas, sem a noção de nada que chamamos substância, seja simples ou composta.
O segundo princípio que me propus observar diz respeito à Geometria. Tendo negado a divisibilidade infinita da extensão, nosso autor sente-se obrigado a refutar aqueles argumentos matemáticos apresentados a favor daquela tese; tais argumentos, de fato, são os únicos que têm algum peso. Para refutá-los, nega que a Geometria seja uma ciência suficientemente exata para admitir conclusões tão sutis como as que dizem respeito à divisibilidade infinita. Seus argumentos podem ser expostos assim: toda a Geometria está fundada nas noções de igualdade e desigualdade, e logo, a própria ciência terá menor ou maior exatidão, conforme tivermos ou não um padrão mais ou menos exato dessa relação. Ora, existe um padrão exato de igualdade, supondo-se que a quantidade é composta de pontos indivisíveis. Duas linhas são iguais quando os números de pontos que as compõem são iguais, e quando cada ponto de uma corresponde a cada ponto da outra. Mas, mesmo que esse padrão seja exato, é inútil, pois jamais conseguimos contar o número de pontos em nenhuma linha. Além disso, isto se funda na suposição da divisibilidade finita, e, portanto, não pode fornecer qualquer conclusão contra ela. Se rejeitarmos esse padrão de igualdade, não temos outro que possua quaisquer pretensões de exatidão. Posso exemplificar com dois padrões comumente usados. Duas linhas sobre unia jarda, por exemplo, são consideradas iguais quando contém qualquer quantidade inferior, como uma polegada, o mesmo número de vezes. Mas isso é um círculo vicioso. Pois a quantidade que chamamos de polegada, em uma das linhas, é supostamente igual à que chamamos de polegada na outra. E a questão ainda é: por qual padrão procedemos quando as julgamos iguais: ou, com outras palavras, que queremos dizer quando dizemos que elas são iguais. Se tomarmos quantidades ainda menores, seguiremos assim in infinitum. Logo, não é nenhum padrão de igualdade. Os filósofos, em sua maioria, quando perguntados sobre o que entendem por igualdade, respondem que a palavra não admite definições, e que basta colocar diante de nós dois corpos iguais, tais como dois diâmetros de um círculo, para fazer-nos entender esse termo. Ora, isso é tomar a aparência geral dos objetos como padrão dessa proporção, e entregar à nossa imaginação e aos nossos sentidos o último julgamento sobre ela. Mas, tal padrão não admite nenhuma exatidão e não consegue fornecer conclusão contrária à imaginação e aos sentidos. Se a questão é válida ou não, o mundo dos sábios deverá julgar. Seria certamente desejável que se descobrisse algum expediente para reconciliar a filosofia com o senso comum, os quais, no que concerne a questão da divisibilidade infinita, sustentaram guerras muito cruéis.




[1] É importante se fazer uma colocação a respeito desta postagem. Este resumo foi escrito pelo próprio Hume, como forma de chamar atenção ao seu Tratado da Natureza Humana (1739-40), do primeiro capítulo Sobre o Entendimento. Assim, por vezes será comum ele se referir ao autor deste resumo como outra pessoa, e não a si próprio.

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