sábado, 29 de março de 2014

O erro cultural e a ignorância

Um dos fatores para a colonização do território brasileiro era a normalidade do ato do estupro. Índio e escravos, em sua maioria, sendo vistos como socialmente excluídos (mesmo esta premissa é questionável, uma vez que para se ser excluído de algo, deve-se pensar que este poderia ser imaginado fazer parte, o que não ocorria) e isso dava o direito a esta agir das formas mais desumanas e cruéis, sem nenhum tipo de questionamento moral.
Isso sempre foi um reflexo da direção patriarcal e machista envolto do comportamento humano desde seus primórdios, onde a questão da força física aliada à inteligência para este mesmo fim imperava como fator de manutenção grupal, tribal. Este aspecto floresceu a criou artifícios de aporte megalomaníacos entre a classe masculina, com o fator de preponderância entre estes. E seres ditos inferiores não poderiam participar do pensamento em sociedade, mais que uma afronta, era um perigo para a sobrevivência da mesma.
A pesquisa realizada e apresentada no último dia 27/3 (quinta-feira) mostra a reluzente escravidão moral ainda imposta na (ir)racionalidade brasileira. Os dados apresentados mostram que 58,5% dos entrevistados concordaram totalmente ou parcialmente com a frase "Se as mulheres soubessem como se comportar, haveria menos estupros", além de dados sobre a vestimenta feminina (“Mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas": 65,1% concordaram totalmente ou parcialmente com a afirmação). Alguns outros dados indicam que quase três quintos dos entrevistados, 58%, concordaram, total ou parcialmente, que “se as mulheres soubessem se comportar haveria menos estupros”. E 63% concordaram, total ou parcialmente, que “casos de violência dentro de casa devem ser discutidos somente entre os membros da família”. Também, 89% dos entrevistados tenderam a concordar que “a roupa suja deve ser lavada em casa”; e 82% que “em briga de marido e mulher não se mete a colher”.[1]
Curiosamente outros dados nos mostram algo que pode parecer paradoxal: “Homem que bate na esposa tem que ir para a cadeia”, concordaram com esta afirmação, total ou parcialmente, 91% dos entrevistados.
Mas, analisando estes números e todo o contexto histórico envolvido, fica claro que nossa sociedade possui bases estruturadas num paternalismo contemporâneo, que reflete aspectos atuais. As pessoas acham errada a imposição física sobre as companheiras, mas estas precisam cultivar hábitos morais que estes próprios impõem para que sejam superiorizados. Um comportamento habitualmente histórico, de linhas agressivas na sua imputação.
Colocar esta máxima em prática implica, necessariamente, em se abster de seus próprios preceitos morais. Dados de pesquisa do Sinan indicam que 89% das vítimas de estupro são mulheres e possuem, em geral, baixa escolaridade. Do total, 70% são crianças e adolescentes.[2] Este período da pessoa é extremamente importante no desenvolvimento do adulto, na formação de vários preceitos que a acompanharão por toda a vida e serão responsáveis pela manutenção da sociedade, e estas acabam por serem brutalmente deformadas pela estupidez de se perfazer superior a tudo e a todos, bem como um resquício da anomalia de caráter destes homens.
Certos de sua base cultural ser forte, estas pessoas que veem com naturalidade que não cabe nas ações de liberdade de ações de mulheres (e homens) propõe uma idealização de sociedade opressora, imputando responsabilidades descabidas a troco de premissas que partem da falta de informação até ao mais puro culto à ignorância. Querem que se responsabilizem as pessoas por suas ações sem analisar a realidade destas. Uma mulher ou homem devem ‘pagar’ por suas ações individuais – que acabam por remeter a apenas elas – e isso lhes custaria, naturalmente, sua dignidade e até mesmo suas vidas.
Há uma confusão profunda, e acredito devida a falta de capacidade de se ensinar, desde cedo, a se interpretar pessoas e suas ações, no que tange o aspecto sexual na sociedade. Este é um tabu, sempre foi. Se antes era por não ser citado, falado e usado de logros para se repassar, hoje o erro é as associações escusas. Estupro não é uma forma de sexo. A relação sempre deverá ser consensual e é ridículo ter que se afirmar – principalmente hoje – como se fosse uma novidade.
Talvez – e que se observe o ‘talvez’ – estejamos num processo de incorporação de ideias mais livres de preceitos absintos, e isso deflagre numa guerra nojenta entre o que a pessoa deve ser livre para si e o que não. No Brasil, muito por nosso clima e necessidade de adaptação à tropicalidade, temos como uso normal roupas menores e mais adaptáveis. Isso passa diretamente por se mostrar o corpo, independentemente do sexo (ou orientação a este). Assim, criamos um conceito muito generalista de beleza que envolve um número menor de roupas e mais corpo à mostra. Isso tudo é natural. Sendo assim, uma pessoa que se prostre a sentir-se bem – não importando sua devida intenção sexualmente ativa – irá se vestir e agir como alguém que se sente bem em fazê-lo (ignoro propositalmente os aspectos que levam a complexidade do ser humano – interno e ambiental – a crer que uma determinada atitude seja a melhor para si ou não, em vista de que o importante para este discurso é a ação efetivamente). Sendo assim, deve-se ficar claro que uma pessoa que se veste e age como age não o faz para ser violentada em suas integridades físicas e mentais, mas para mostrar atributos que lhe mostram serem agradáveis.
Portanto, aí reside o erro conceitual de interpretação – sem contar, obviamente, os despojos déspotas de pessoas que pior que interpretar, não interpretam por preguiça intelectual, apenas como lhes convém – por ‘excelência’: elas confundem o despudor (ou o próprio pudor conceitualmente diferente) lógico e de direito com a violência ignóbil e execrável. Uma relação funesta de causalidade.
É inadmissível que numa sociedade dita democrática e livre, com preceitos humanistas e laicos, se permita analisar uma pesquisa como estas e manter-se de braços cruzados mediante a alienação da nossa população. Isto mexe com a vida e os direitos das pessoas. Estes dados são resultados de uma grave manutenção de uma cultura distorcida, errada e ignorante, que permeia muito nosso dia a dia. Todos os fóruns de nossa sociedade devem lutar e extinguirem estes preceitos machistas, sexistas, misóginos e arbitrários que os rodeiam. As entidades que, por algum motivo (históricos, culturais, dogmáticos) que tenham premissas de submissão devem ser revistas e expurgadas, e o melhor método é e sempre será a educação. Uma educação verdadeiramente humanista e humanizadora, alijada de nossa atual cultura. Esta, por sua vez, deve ser mostrada e incentivada a partir do momento que se conclua sua literalidade como inútil.
A pesquisa mostra aspectos que levam direto ao que foi intensamente proposto neste texto, onde a sociedade com referencia masculina de paternidade tenderá a ver a mulher (e outros “fora” deste universo masculinizado) como objeto de suas realizações grupais e estes também devem possuir desejos e vontades que se concatenem com esta manutenção. O dado mais absurdamente preocupante disto é que, dentre os entrevistados, 66,5% eram mulheres.

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