terça-feira, 11 de outubro de 2016

Uma emenda pior que o soneto - o erro do PEC 241

Los Desastres de la Guerra - Francisco de Goya
Muito tem se falado do Projeto de Emenda Constitucional número 241 (PEC 241). Há grupos que o defendem e outros que o execram. Há infindáveis sites que mostram como este funcionaria, caso aprovado em última instância (ontem, dia 10/10, foi aprovado em primeira instância). Tentarei, com este artigo, demonstrar seu funcionamento e suas implicações, bem como o motivo do mesmo e, talvez, alternativas.
Este PEC visa reduzir gastos públicos para atrair mais investidores, elevar os investimentos privados no país e, assim, melhorar nosso crescimento econômico. Teria também como iniciativa reduzir os gastos públicos de nosso PIB (Produto Interno Bruto, a soma de nossas riquezas produzidas), que atingiu 66,2% no ano passado, segundo o Banco Central.
Contudo, é importante verificarmos que há algumas informações equivocadas sobre isso e análises, a priori, não correspondentes.


O PIB

O PIB, como dito acima, é a soma de toda a produção interna de riquezas de um país. No entanto, este cálculo deve ser feito de forma a não haver dupla conta de um mesmo produto ou serviço. Se você comprar laranjas e fizer suco em sua casa, para você e sua família, o valor calculado para o PIB será o da venda da laranja, enquanto que se você toma um suco numa lanchonete o valor do cálculo incidirá sobre o suco, uma vez que a laranja ali já está inclusa. Outros aspectos importantes são:
1º) Só entram na conta do PIB aqueles bens e serviços produzidos no ano em questão. Por exemplo, se um veículo foi produzido em 2014, mas foi colocado em estoque e vendido em 2015, ele entra no PIB de 2014, não no de 2015.
2º) Só entram no cálculo os bens e serviços finais, [1] não os bens intermediários. [2]
Tendo isso em vista, podemos agora pensar em como é feito o cálculo dos gastos com este PIB, uma vez que o Governo Federal precisa equilibrar a arrecadação e os gastos desse valor total durante todo ano seguinte após o ano de exercício do levantamento desse valor, tendo o valor do ano anterior como base. Vamos procurar nos manter nos pontos focais dos questionamentos levantados com relação ao PEC: educação e saúde, e adicionarei aqui outro ponto que tem sido muito colocado nestes debates, a dívida pública e seus juros. Tenhamos em mente que ‘dívida pública’ é diferente de 'gastos publicos'; enquanto o segundo é o gasto com ações referentes a bens e serviços de responsabilidade governamental, ou seja, saúde, educação e assistência social, o primeiro relaciona-se com dívidas contraídas pelo Estado (que será explicado mais abaixo) . 
O texto da Constituição Federal, no art. 198, § 2º, I, diz que:
no caso da União (com relação aos recursos federais destinados à saúde), a receita corrente líquida do respectivo exercício financeiro, não podendo ser inferior a 15% (quinze por cento);
Ou seja, se o valor do PIB do ano for de 1 trilhão de reais, o governo terá que gastar, no mínimo, 150 bilhões de reais. Com relação à educação, a constituição determina no art. 212 que
 A União aplicará, anualmente, nunca menos de dezoito, e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios vinte e cinco por cento, no mínimo, da receita resultante de impostos, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino.
Ou seja, a União arrecadando de PIB os mesmos 1 trilhão de reais do exemplo passado ela deverá investir, minimamente, 180 bilhões de reais. Com estes dados estabelecidos, analisemos outro valor incorporado aos gastos do PIB, o pagamento da dívida pública e de seus juros.


A Dívida Pública

A dívida pública federal (DPF) nada mais é que a dívida que o Estado contrai quando precisa de mais verbas ou repor algum gasto previsto ou não. Estas dívidas são
Contraída pelo Tesouro Nacional para financiar o déficit orçamentário do Governo Federal, nele incluído o refinanciamento da própria dívida, bem como para realizar operações com finalidades específicas definidas em lei. A Dívida Pública Federal pode ser classificada de distintas formas, sendo as principais: i) quanto à forma utilizada para o endividamento, e ii) quanto à moeda na qual ocorrem os fluxos de recebimento e pagamento da dívida. Em relação à forma, o endividamento por ocorrer por meio da emissão de títulos públicos ou pela assinatura de contratos. Quando os recursos são captados por meio da emissão de títulos públicos, a dívida daí decorrente é chamada de mobiliária. Quando a captação é feita via celebração de contratos, a dívida é classificada como contratual.[3]
Com isso, temos que esta dívida se faz necessária quando não há recursos suficientes para a quitação de sua dívida (e, para o foco deste debate, independe do motivo destas serem feitas, pois aí teríamos um debate mais amplo e deslocado). Contudo, mais do que pagar estas dívidas, o governo federal está preso, também, aos juros implícitos a estas dívidas. Sendo que o governo pode emitir títulos para aumentar o prazo de pagamento de uma mesma dívida, fazendo com que esta fique ainda por muito tempo tendo de ser paga, mesmo que a contração original já tenha sido quitada.
Mas quem define o valor destes juros? O Banco Central, através de seu Comitê de Política Monetária (Copom). Nas reuniões do Copom é que ficam decididas quais serão as taxas básicas de juros, a Selic.[4]
Acontece que, segundo Maria Lúcia Fattorelli, “para essas reuniões (o Banco Central) convida, quase que exclusivamente, representantes do próprio mercado financeiro que detém a imensa maioria dos títulos da dívida. O que acham que os interessados em continuar recebendo as elevadas remunerações dos juros irão recomendar? É evidente o conflito de interesses. A recomendação desses especialistas é adotada pelo COPOM, sem qualquer crivo ou sequer debate por parte do Congresso Nacional. A taxa passa a vigorar como ‘lei’ e ponto final.”[5]
Assim, o ciclo de se aumentar os juros ou mesmo mantê-los num patamar elevado acaba por favorecer quem tem interesse direto na manutenção daquelas, uma vez que esta taxa básica servirá para todas as transições de mercado no país, como o pagamento da dívida pública, por exemplo.
Mas por que estamos falando de taxa de juros, quando o assunto é o PEC 241? Porque, pegando o início deste texto, veremos que uma das alegações para aprová-lo é a contenção de despesas e estas contenções atingiriam diretamente serviços essenciais, enquanto que este PEC nada fala a respeito do altíssimo gasto com as dívidas publicas e seus juros.


Os Juros da Dívida Pública

Em 2015, a porcentagem retirada do PIB para o pagamento da dívida (amortização) foi de 39,5%, e mais 7,1% foram destinados aos juros desta mesma dívida, chegando a um montante de 46,6% apenas para a quitação destas dívidas. Ora, por mais que entendamos que o ideal não seja pegar dinheiro emprestado para sanar contas e realizar as ações, há circunstâncias em que este se faz presente, se faz necessário, principalmente porque é um meio também de fazer a economia não estagnar. Só que estes valores acabam por ir para as mãos dos grandes investidores de títulos públicos, em que seu interesse é a formação de capital financeiro alto e sólido, independentemente do que este venha gerar na forma de produtos e serviços. E quem seriam estes? Investidores com poder financeiro para ditar as regras do mercado. Há ainda os investidores estrangeiros (pessoas físicas ou jurídicas, empresas, conglomerados, bancos ou indivíduos muito ricos), em que seus empréstimos ao país obriga o governo, à força constitucional, a pagar esta dívida em dólares (na maioria esmagadora dos casos) o que só faz aumentar mais o valor pago (se U$ 1,00 custa R$ 3,00 cada dívida pública externa será arcada num valor três vezes maior). 
Dito isto, vamos ao PEC.


Projeto de Emenda Constitucional (PEC) 241[6]

Levado ao Congresso Federal pelo presidente Michel Temer, a proposta diz basicamente que ficará instituído um novo Regime Fiscal, válido a partir de sua publicação, e que prevê um limite orçamentário individualizado para cada um dos poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário), onde as dívidas por estes não poderão ser ampliadas ou contraídas num valor acima do que já estipulado pela constituição, e ainda revoga o art. 2º da Emenda Constitucional nº 86. Mas o que diz este artigo? Vejamos:
Art. 2º O disposto no inciso I do § 2º do art. 198 da Constituição Federal será cumprido progressivamente, garantidos, no mínimo:
I - 13,2% (treze inteiros e dois décimos por cento) da receita corrente líquida no primeiro exercício financeiro subsequente ao da promulgação desta Emenda Constitucional;
II - 13,7% (treze inteiros e sete décimos por cento) da receita corrente líquida no segundo exercício financeiro subsequente ao da promulgação desta Emenda Constitucional;
III - 14,1% (quatorze inteiros e um décimo por cento) da receita corrente líquida no terceiro exercício financeiro subsequente ao da promulgação desta Emenda Constitucional;
IV - 14,5% (quatorze inteiros e cinco décimos por cento) da receita corrente líquida no quarto exercício financeiro subsequente ao da promulgação desta Emenda Constitucional;
V - 15% (quinze por cento) da receita corrente líquida no quinto exercício financeiro subsequente ao da promulgação desta Emenda Constitucional.[7]

Esta emenda de 2015 trata de se aumentar o valor de proposição para serviços públicos básicos numa fórmula que incidiria sobre a inflação e que, com isso, tende a acompanhar o crescimento da população e as necessidades decorrentes. Com o PEC 241 em vigor, se estagna o aumento do valor por vinte anos, não acompanhando assim as necessidades da sociedade. Só para se ter uma idéia, o Gasto Social Federal de 1995 foi de 234 milhões (11,24% do PIB daquele ano) e, quinze anos depois, o gasto foi para 63,5 bilhões (correspondente a 15,54% do PIB de 2010). Veja agora que nenhum destes valores chega sequer perto do gasto que a dívida e os juros perfazem.
Os pontos específicos relacionados à educação e a saúde se encontram no art. 104 deste PEC.
Art. 104. A partir do exercício financeiro de 2017, as aplicações mínimas de recursos a que se referem o inciso I do § 2º e o § 3º do art. 198 e o caput do art. 212, ambos da Constituição, corresponderão, em cada exercício financeiro, às aplicações mínimas referentes ao exercício anterior corrigidas na forma estabelecida pelo inciso II do § 3º e do § 5º do art. 102 deste Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.

O que fica claro nas análises destes dados é que a proposta tem como objetivo atingir, de forma sistemática, as necessidades populacionais e previstas na constituição, baseando-se apenas num senso comum onde se diz que a população deve ajudar o país a arcar com as conseqüências de políticas econômicas predatórias visando, dentro de um espectro sedimentário, um alívio fiscal e uma rentabilidade maior para quem já possui poder dominante no cenário econômico do país.


Equívoco?

Um grave exemplo de quão é ignorada a verdadeira raiz do problema é na fala da justificativa do PEC no parágrafo 4, onde é citado que “A raiz do problema fiscal do Governo Federal está no crescimento acelerado da despesa pública primária. No período 2008-2015, essa despesa cresceu 51% acima da inflação, enquanto a receita evoluiu apenas 14,5%. Torna-se, portanto, necessário estabilizar o crescimento da despesa primária, como instrumento para conter a expansão da dívida pública. Esse é o objetivo desta Proposta de Emenda à Constituição.” Ora, este crescimento se deve muito mais a falta de um planejamento mais amplo com relação à economia do país e as crises econômicas mundiais, não obstante equitativas ao período mencionado.
Outro ponto que é colocado de forma intimidadora é com relação ao aumento dos gastos com as despesas públicas primárias (encargos de responsabilidade social do governo federal como saúde, educação e assistência social), que segundo dados fornecidos pelo próprio autor do PEC foi de 14,5%, no entanto não analisou (ou, ao menos, não mostrou dados de análise no PEC) no mesmo período, que a dívida pública (empréstimos do governo federal com juros) teve um aumento de 19,7%.[8] Ou seja, os gastos com pagamentos de empréstimos e juros, que já são muito maiores que os gastos com as áreas de obrigação social do governo, aumentou mais, criando um déficit ainda maior.
Além de tudo isso, ainda houve uma culpabilização equivocada quando se atribui diretamente a expansão da dívida pública com os gastos de despesas primárias. Não necessariamente uma está ligada a outra. Pode-se pensar que para manter os gastos da segunda, poderia necessitar-se de aumentar a primeira. Contudo, eis um erro pontual. A segunda possui arrecadação própria e só haveria necessidade de outras fontes caso haja algo como um desvio de verba para outras finalidades.


Há soluções?

Precisamos partir da análise para ver se há um problema. Há? Qual? Não há um consenso de qual seria o patamar ideal para a dívida pública. Tomemos como exemplos os mais variados países, no ano de 2015: enquanto no Brasil a dívida pública chegou a 56,8% de seu PIB, temos os E.U.A. que alcançou 103%, Japão com estrondosos 226%, Reino Unido teve 88,2% e a Zona do Euro chegou 92%, passando por países como o México com apenas 28,6%.[9]
Uma forma de analisar nossa necessidade de estabilizar as contas e, partindo do princípio de que realmente se necessite diminuir os gastos (e pelos mais variados fatores, como para atrair investimentos estrangeiros em nossas empresas, por exemplo), havendo conosco uma economia fragilizada no mercado de empregos e negócios, pode-se olhar para as dívidas das grandes empresas, tradicionalmente caloteiras. Vinte empresas no país possuem dívidas acumuladas em aproximadamente 850 bilhões com o governo, cerca de 14% do PIB brasileiro no mesmo período. Estas dívidas afetam a economia do país, a geração de emprego e renda, mas o lucro dos acionistas majoritários destas empresas pouco é mexido. Claro que estas dívidas foram contraídas num período maior que uma ano (ano fiscal), mas se a maior parte desta dívida for sanada de forma a não prejudicar a empresa e seus empregados, seria uma arrecadação alta suficiente para o governo redistribuir verbas para setores mais necessitados. 

E, assim, chegamos a um ponto interessante: porque não mexer exatamente na dívida pública? Os juros são aumentados de forma irresponsável apenas para que a manutenção de seus ganhos continue, com poucas perdas aqui e algum aumento ali. Esse ciclo mantém-se. É o que se tem chamado de juros abusivos. No mercado há a necessidade do juros pois esta é a forma de se lucrar, é a forma de se propor uma arrecadação. Só que o valor montante é extremamente alto, o que demonstra o desejo abusivo de saber lucrar cada vez mais e mais apenas na forma acúmulo de capital. Mudar esta realidade é necessário e, talvez dentro de uma visão mais simples, desvincular os juros de uma comissão contaminada e atendendo a vontades próprias. O Brasil possui uma elevadíssima taxa básica de juros, chegando a 14,25%, perdendo para países como Argentina (26,75%) e Moçambique (17,25%) e ficando em 14º lugar entre as maiores do mundo. Isso atravanca a economia uma vez que impossibilita maiores investimentos em variados setores. 
Possibilidades há, o problema é que tipo de pensamento está na determinação do grupo que está no comando. A população que trabalha e necessita de atenção do governo para as mais variadas áreas será enormemente prejudicada, direta ou indiretamente. Uma prefeitura pensará duas vezes antes de criar um novo hospital, posto de saúde, creche ou escola pois isso acarretará no aumento de despesas com funcionalismo público tendo estas esferas governamentais mais dificuldade de justificar estas necessidades, bem como tanto saúde quanto educação ficarão mais precarizadas. A quem interessa tudo isso? Àqueles que detém o poder econômico privado nas mãos. Só estes ganhará com isso.

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