O pintor e a modelo - Pablo Picasso |
Ser
humanista quer dizer, dentre tantas outras coisas, ter empatia pela dor e pela
luta do outro, daquele que é oprimido e há muito tempo tem sido sumariamente
ignorado, manipulado, corrompido, ferido, calado e desculturalizado. Isso é um
ótimo ponto de partida para que se apoio e, sendo bem vindo, participe
ativamente das lutas. Mas há uma parte do processo que consiste, de certa forma,
em descaracterizar tudo aquilo que, histórico e socialmente, fizeram à nós desde
antes mesmo de nascermos.
Quando nascemos
fazendo parte de grupos que são historicamente opressores é comum nos verem
como alguém que poderá, em algum dado momento e pelas mais variadas razões,
agirmos de e em situações que identifique claramente o histórico opressor de ‘nós
para eles’. E de forma alguma estas pessoas podem ser responsabilizadas por
isso. Se temos que sempre se disse que as mulheres devem ter um determinado
comportamento que faça com que elas devam temer encontrar com homens sozinha na
rua por que ela teria algum tipo de culpa de fazer exatamente aquilo que foi
ensinada a fazer, ainda mais se a sociedade não lhe dá qualquer motivo para que
não precisa mais agir assim? E este é apenas um dos milhares de exemplos que poderiam
ser citados.
Assim como
acima está implícito, falo aqui como tendo nascido e sido colocado num grupo
historicamente opressor, e é para pessoas como eu que falo. Com todo este aparato
ideológico instaurado em nossa sociedade desde tempos remotos é natural que,
por mais que tenhamos uma noção diferenciada sobre os direitos, o respeito e a
igualdade, nos pegarmos agindo de forma que identifique o histórico opressor.
Dizemos ser terminantemente contra o racismo, mas damos risadas de piadas com
negros ou achamos que negros tem maior propensão a ser bandido (mesmo que seja
admitindo que é por que moram em favelas); são completamente contra machismo,
mas julgam que uma mulher só consegue algo que um homem não conseguiu por causa
de sua aparência ou por razão de ser uma mulher; se diz respeitador de outras
fés ou da descrença porém acha temerário ver crianças sendo apresentadas à
estas outras fés ou outras descrenças enquanto se orgulha do batizado de seu
filho. Qualquer uma (dentre tantas outras) das posições acima citadas pode, de
uma forma ou de outra, ter uma vertente verdadeira na concepção social, e isto
só nos apresenta o fato de que isso tudo é a construção social que nos
imputaram para que pudéssemos perpetuá-la, propaga-la.
Assim,
temos então a desconstrução das premissas opressoras como estágio importante
para se compreender minimamente a dor do outro e empatizar por seus direitos
sumariamente negados. Nos pegaremos com estas incoerências e hipocrisias com
certa frequência e, infelizmente, muitas vezes não nos será percebido e
continuaremos com elas acreditando não haver qualquer coisa opressora ali. Não
fomos criados com as dores daquela opressão, não fomos ensinados a termos
empatia pela dor de grupos sociais, porém podemos nos inconformar com as
injustiças provindas delas e trabalharmos aspectos decisivos para o caminho da
igualdade. Ouça sempre o que estas pessoas têm a dizer, mesmo que a princípio
(e, pessoalmente, não vejo como sendo a maioria dos casos) pareça-lhe um tom
agressivo e até mesmo acusatório, pois lembre-se que eles foram subjugados e
calados por muito tempo e através das lutas sociais muito recentes em toda a história da humanidade é que conseguem falar e
se expressar, gritar pelas dores próprias e de todos como eles; lembre-se que
determinadas leis e incentivos para estes grupos provém não da vontade de se
dar regalias ou privilégios para eles mas sim como uma reparação histórica que,
mais que um pedido de desculpas tardio, é uma forma de colocar à estas pessoas
as oportunidades que, por razão de desde sempre terem lhes sido negadas hoje
lhe são extremamente dificultadas; analise a história de cada grupo social que
luta por direitos e faça a relação direta com suas lutas e exigência, daí verá
que a correlação é direta e pertinente; compreenda que um sistema não pode simplesmente
ser mudado ou retocado nem mesmo com a melhor boa vontade do mundo pois ele
está completamente enraizado na percepção das pessoas e da sociedade, sendo
assim este sistema deve ser derrubado de forma a então poder contemplar a
justiça e igualdade à todos.
O processo
de desconstrução é longo e, muitas vezes, incômodo, pois revela o quão
maléficos podemos ser às pessoas que rodeamos e até mesmo àquelas que amamos e
queremos tão bem. Possivelmente nesse processo magoaremos a muitos e perderemos
até mesmo a credibilidade por ações incoerentes e incabíveis para alguém que
gostaria de ser visto (e se ver) como humanista. Porém, no dia-a-dia, nos é
gratificante perceber o quão nós mesmo mudamos e temos uma humanidade justa como
nossa maior riqueza e presente para as futuras gerações.
Acredito
que, pessoalmente, quem deve ter a certeza irrestrita das próprias ações a
serem tomadas e seguidas e de como quererá que estas sejam e de como a pessoa quererá
ser vista e se ver será a própria pessoa. Sendo assim, quem deve saber o que
fazer para contemplar um humanismo claro (e até mesmo ver se quer ser humanista)
é a própria pessoa. Mas pensemos nas implicações de não se ser assim, de se
perpetuar as diferenças e se lutar para a manutenção de seus privilégios e da
restrição aos outros. Existem meios claros que indicam formas de se
salvaguardar através de conceitos que atribuem às pessoas desprovidas de
oportunidades humanamente explícitas a nós uma culpabilidade por ações que, na
verdade, são expedientes de nossa opressão histórica. Opressores históricos
criaram e nós, hoje, aceitamos ideias abstratas e irregulares, tendo a chamada meritocracia
e algumas determinadas regras sociais como exemplos, para justificar a falta de
oportunidades e de igualdade entre opressor e oprimido e transformar esta
segregação em culpabilização da vítima. Infelizmente é comum e tragicamente aceita
a culpabilização da vítima independentemente do quão fiel às regras intransigentes
impostas ela seja.
Por que nos
importar? Qual seria a resposta mais plausível e mais correta para justificar o
porquê de se lutar para se ser humanista? A verdade é que as pessoas que fazem
parte desses grupos sociais não têm – e, portanto, dificilmente pedirão – a participação
de pessoas que não estão em suas lutas. E também por mais que qualquer um
exponha todas as suas ideias para servirem de resposta à pergunta do ‘porquê’,
somos nós mesmo que temos que buscar isso. Faça você parte de um grupo oprimido
ou não, em algum momento e em algum aspecto, seja histórico, social, econômico,
intelectual ou uma junção de mais de um destes, você é potencialmente um
opressor ou foi educado a acatar passivamente a opressão. Uma mulher branca
luta por direitos que lhe condizem, porém rejeita e ignora a luta contra a
homofobia; um ateu luta para ter seus direitos de descrença respeitados e para
não ter a influência religiosa nos ditames de sua vida, todavia mantém em si
premissas machistas e de subjugo feminino; um casal homossexual luta por seu
direito de constituir uma família, porém acredita que, para si, não conseguiria
pensar em adotar uma criança negra; uma pessoa negra luta ferozmente pela
representatividade de seu povo que é tão alijada da mídia, mas não quer ver
ateus falando sobre as incoerências religiosas e o quão elas são danosas. Há,
ainda, aqueles grupos sociais com variadas discussões dentro de sua própria
luta, como homossexuais que desfazem de bissexuais e transexuais, mulheres que
ignoram a luta das mulheres negras ou ateus ativistas que consideram covardia o
agnosticismo. Toas estas colocações mostram quão é grande a variabilidade do
ser humano em suas lutas, mas de forma nenhuma isto deva ser um empecilho para
se alcançar o objetivo maior que é a humanização do ser humano.
Construir
uma sociedade onde todos sejamos iguais perante à lei e à nós mesmos e
diferentes em nossas necessidades e desejos começa com a construção de uma
empatia humana e a desconstrução dos preconceitos a nós impostos. Daí sim,
alcançado isso, seremos realmente livres.
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