Martírio de Catarina - Cranach |
Semanalmente,
perto de 3 mil atendimentos são realizados por João Teixeira de Farias, ou como
é conhecido em varias comunidades espíritas e programas de televisão, ‘João de
Deus’. Seus atendimentos se baseiam no que se intitula “cirurgia espiritual”,
para as mais variadas síndromes que acometam pessoas que, dentro de um
determinado e pessimista autoprognóstico, e até mesmo incauto, buscam aliviar e
até mesmo livrar-se do seu acometido. Um desses casos é da austríaca Martha
Rauscher, de 58 anos, que morreu na Casa Dom Inácio de Loyola, centro dirigido
por João de Deus. Em busca de tratamento espiritual, Martha teria chegado a
Abadiânia no final de janeiro, acompanhada de duas amigas. Ainda não se sabe ao
certo o motivo da morte da austríaca – que ocorreu em 2 de fevereiro de 2012,
mas a suspeita da polícia civil da cidade é de que ela tenha sofrido um
acidente vascular cerebral (AVC) enquanto era atendida na casa. O caso está
sendo investigado a pedido do Ministério Público.1
O que um caso
como esse nos remete para uma compreensão completa de até aonde vai a
disposição das pessoas se atrelarem a isso e do governo tornar a situação para
si e agir conforme a legislação vigente deva agir.
O estelionato
se define como “obter, para si ou para outro, vantagem ilícita,
em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante
artifício, ardil ou qualquer outro meio fraudulento.” (Título II, Capítulo
VI, Artigo 171)2. Com esta premissa em mente, não é difícil analisar
que este artigo abrange tranquilamente uma gama enorme de ações provenientes do
paradigma religioso. Daí então o chamaremos de ‘Estelionato religioso’3
(termo esse não criado aqui e perdido pelas auguras das sistemáticas
publicações contra este crime tão pouco creditado), pois sua especificidade em
várias ações eclesiásticas – como já dito – convém também sua abrangência para
vários impropérios destes.
O estelionato como charlatanismo
Ao se fazer por
meio fraudulento uma ação direta contra outrem, fica claro que a intenção só
pode ser possuir vantagens sobre este ou outros, com a demonstração da ação.
Foi isso que João de Deus fez. Pura e simplesmente. Fez e ainda o faz. Mas o
cerne da atuação dele, dentro do prospecto individualista, onde poderia se
colocar que o mesmo agia conforme seu determinismo, numa causa que superaria
uma ocorrência como a de Martha Rauscher, é inquestionável que estas ações
ocorreram e o mesmo deve responder por elas. Suas ações remetem não apenas ao
artigo 171, mas mais diretamente ao Artigo 282, a saber, “Exercer, ainda que a
título gratuito, a profissão de médico, dentista ou farmacêutico, sem
autorização legal ou excedendo-lhe os limites” – este senhor é analfabeto (dito
isto é como forma de suplementar o contexto). Há ainda os Artigos 283 (“Inculcar
ou anunciar cura por meio secreto ou infalível”) e 284 (“Exercer o curandeirismo”), onde ambos se aplicam às ações deste senhor de maneira
explícita. Todas estas leis se põem com o intuito de evitar praticas que levem
ao incauto da esperança pessoal, pois a mesma não pode ser suplantada quando se
há a profilaxia de quaisquer males que haja na pessoa.
O fato de que
alguém possua um problema aparentemente irresolúvel não pode dar o direito de
outro se aproveitar, mas o axioma desta situação é exatamente este: esse método
não existiria se pessoas não se vissem necessitadas disto. E isso acaba remetendo,
numa proporcionalidade absurdamente grande, a tragédias como com a senhora
austríaca, num caso especificamente médico: falta de assepsia, uso irregular de
métodos provavelmente nada estudados sobre o que se fazer e não se fazer no
corpo humano, isso é o curandeirismo.
O milagre
Ao compreender
melhor o que se cita nos artigos 283 e 284 acima citados, podemos perceber
outro arquétipo da religião: as curas milagrosas. São comuns ações que
impliquem, por parte de lideres doutrinários e muitas vezes carismáticos, na
‘cura de males’ através de ações inócuas, como a simplicidade da reza, até
ações mais diretas destes, vistas como exorcismos, pregações eloquentes e
cheias de trejeitos, convencimento em massa de dada informação errada ou até
mesmo mentirosa. Ações como estas não são exclusividades das igrejas
neo-pentecostais (apesar de ser uma pratica muito mais utilizada como
propagação de sua doutrina fiduciária, principalmente no Brasil e nos E.U.A. –
maiores países pentecostais do mundo4), mas durante muito tempo foi
comum – e é até hoje – a prescrição de orações em pequenos pedaços de papel envoltos
em capsulas ou mesmo simplesmente amarrados, e os mesmos ingerido pelos fiéis,
que juravam à todos os santos que sua acreditada cura havia se dado por este
motivo.
Essa crença
costuma postular pela não aceitação de tratamentos convencionais – ou pelo
menos o interpelando como complementar à ritualística – mas que possuem uma
metodologia de eficácia comprovada efetivamente. As pessoas que procuram então
esta “alternativa”, mas não abandonam seus tratamentos corretos curiosamente
parecem demonstrar certo crescimento no quadro geral, mas isso apenas indica
que o tratamento em si faz o efeito desejado, e a aplicação do paciente com
relação a horários, quantidades de medicamentos corretamente aplicados e sua
regimentação nos alimentos e exercícios é a aplicação mais impactante da fé. Ou
seja, isso é basicamente ter fé que o tratamento vai resolver (e com o auxilio
divino) e fazer por onde este corresponda, mas que se fique claro que isso não
é e nunca foi exclusividade dos beatos5.
O dízimo
Este é por si
só um cancro malévolo que se consta na pratica religiosa brasileira, e com um
furor quase que incompreensível nestes últimos anos. E aqui, novamente, vemos
artigos anteriormente citados sendo ricamente apresentados nas ações de
déspotas que se incitam contra quaisquer ideias que emergem contra esta
prática.
Ao se fazer uma
analise em cima das ideologias doutrinárias das três principais vertentes
religiosas no mundo, postadas em seus respectivos livros sagrados
(cristianismo, islamismo6 e hinduísmo7), nota-se uma
curiosa falta de indicativos com relação ao termo específico ‘dízimo’, onde no
Corão (livro sagrado islâmico) o mesmo possui a conotação de tributo, mas sem
especificar muito mais do que isto. Já no hinduísmo sequer cita qualquer termo
que possua equivalência.
Mas o dízimo
possui uma conotação mais explicita aos cristãos: dar de grado para a
justificativa do desapego material. Pelo menos esta é a pregação mais prostrada
para lhe dar ênfase. Dar o dízimo é um conceito do Velho Testamento. O dízimo
era exigido pela lei na qual todos os israelitas deveriam dar ao
Tabernáculo/Templo 10% de todo o fruto de seu trabalho e de tudo o que criassem.
Alguns entendem o dízimo no Velho Testamento como um método de taxação
destinado a prover pelas necessidades dos sacerdotes e Levitas do sistema
sacrificial. Já no Novo Testamento não se determina explicitamente uma dada
porcentagem de ganhos que deva ser separada, dizendo “apenas” se dar “conforme
a sua prosperidade”. A igreja cristã basicamente tomou esta proporção de dízimo
do Velho Testamento e a incorporou como um “mínimo recomendado” para a oferta
cristã.8
Mas a
incoerência começa quando a propagação desta começa a ser imputada aos membros
como forma não apenas do que se pareceria o mais correto, como manutenção dos
templos, acomodações e despesas em geral (apesar de certas vertentes cristãs a
colocarem somente para isso) mas determinam
como uma renovada e contemporânea ‘indulgência’, que celebraria a “salvação
das almas dos fiéis”.9 Mas este processo pode – e deve – ser enquadrado
no conceito de estelionato, quando a prostração se dá da maneira última citada.
Casos diferenciados e eloquentemente esperançosos podem ser encontrados, como
quando a Igreja Universal do Reino de Deus foi condenada a devolver o dizimo
ofertado pelo “milagre não ter ocorrido”. O caso do motorista Luciano Rodrigo
Spadacio, à época com 19 anos, começou em 1º de janeiro de 1999, quando foi
abordado por um pastor da Igreja Universal do Reino de Deus. O pastor o teria
convencido a se desfazer de seus bens materiais e entregar o que arrecadou para
a Universal. O motorista, motivado pela ‘conversa’ com pastor, vendeu seu único
bem, um Del Rey, conseguindo R$ 2,6 mil reais e entregou ao pastor. O
sacrifício estava feito, faltava a recompensa. Dias depois, Luciano se
arrependeu, se vendo como vítima da fragilidade e do desespero por conta de
dificuldades financeiras. Foi ao banco e conseguiu sustar um dos cheques, no
valor de R$ 600 reais, que entregara ao pastor. A mesma sorte não teve com o
segundo, de R$ 2 mil. Alegando ser vítima de gozações e chacotas, o motorista
entrou com ação de indenização, por danos morais e materiais.10
Deve-se então
ficar atento a posicionamentos com relação à esta prática, não pelo simplismo
da individualidade retorquida do religioso ‘dizimista’, mas pelos prejuízos claramente observáveis à
legislação e a que se denegreçam pessoas que não participam desta descalabro
sejam tosquiadas do convívio social. Não podemos esperar muita coisa diferente
em doutrinas que citem a própria palavra ‘dízimo’ 56 vezes!11
As mais
variadas formas de se subjulgar pessoas e grupos não são novas, nem possuem
vertentes atuais, e as religiões sempre foram – e são até hoje – meios muito eficazes
de se alienar, seja pelos métodos, promessas, imposições de muitas maneiras.
Aqui apenas demonstramos que o estelionato é a nomenclatura mais coerente com
determinadas práticas infelizmente muito difundidas no meio religioso. Desde
casos em que a pessoas deixe sua atenção voltada para longe de sua própria saúde
até em casos que é a simples extorsão mesmo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Comente!