domingo, 8 de setembro de 2013

Ode ao ceticismo - O mundo assombrado pelos demônios, de Carl Sagan

Mefistófeles - Eugène Delacroix
O MUNDO ASSOMBRADO PELOS DEMÔNIOS
* retirado do livro "O mundo assombrado pelos demônios"
Carl Sagan

Os deuses cuidam de nós e orientam nossos destinos, é o que ensinam muitas culturas humanas; outras entidades, mais malévolas, são responsáveis pela existência do mal. Ambas as classes de seres, tanto faz se consideradas naturais ou sobrenaturais, reais ou imaginárias, servem às necessidades humanas. Mesmo que sejam inteiramente fantásticos, as pessoas se sentem melhor acreditando neles. Assim, numa época em que as religiões tradicionais têm estado sob o fogo fulminante da ciência, não é natural cobrir os antigos deuses e demônios com vestes científicas e chamá-los de alienígenas?
A crença em demônios era difundida no mundo antigo. Eram considerados seres naturais, e não sobrenaturais. Hesíodo os menciona de passagem. Sócrates descrevia sua inspiração filosófica como obra de um demônio pessoal e benigno. Sua professora, Diotima de Mantinéia, lhe diz (no Banquete de Platão) que: Todo o demoníaco é intermediário entre Deus e os mortais. Deus não tem contato com os homens. Ela continua: “Só por meio do demoníaco é que existem relações e diálogos entre os homens e os deuses, quer em estado desperto, quer durante o sono.”. Platão, o discípulo mais famoso de Sócrates, atribuía um papel elevado aos demônios: “Nenhuma natureza humana investida de poder supremo é capaz de ordenar os assuntos humanos.”, diz ele, “sem transbordar de insolência e inquidade”...

Não nomeamos bois para ser os senhores dos bois, nem bodes para ser os senhores dos bodes, mas somos nós próprios, uma raça superior, que os governamos. De maneira semelhante, Deus, por amor à humanidade, colocou acima de nós os demônios, que são uma raça superior, e eles, de forma fácil e prazerosa para si mesmos, e não menos prazerosa para nós, tornam as tribos dos homens mais felizes e unidas, ao cuidar de nós e nos dar paz, reverência, ordem e justiça que nunca falham.

Ele negava firmemente que os demônios fossem uma fonte do mal, e não representava Eros, o guardião das paixões sensuais, como um deus, mas como um demônio, “nem mortal, nem imortal”, “nem bom, nem mau”. Mas todos os platônicos posteriores, inclusive os neoplatônicos que influenciaram poderosamente a filosofia cristã, sustentavam que alguns demônios eram bons e outros maus. O pêndulo balançava. Aristóteles, o famoso discípulo de Platão, considerava com seriedade a afirmação de que o roteiro dos sonhos é escrito pelos demônios. Plutarco e Porfírio afirmaram que os demônios, que preenchiam o ar superior, vinham da Lua. Apesar de impregnados pelo neoplatonismo da cultura em que estavam imersos, os primeiros padres da Igreja ansiavam por se separar dos sistemas de crença “pagãos”. Ensinavam que a essência da religião pagã consistia no culto de demônios e homens, ambos interpretados erradamente como deuses. Quando São Paulo se queixou (Efésios 6:14) da maldade em lugares celestiais, não estava se referindo à corrupção do governo, mas aos demônios, que viviam naqueles locais:

Pois não temos que lutar contra a carne e o sangue, mas contra os principados, contra as potestades, contra príncipes das trevas desse século,
contra as hostes espirituais da maldade, nos lugares celestiais.

Desde o início, os demônios significavam muito mais do que uma simples metáfora poética para o mal no coração dos homens.
Santo Agostinho ficava exasperado com os demônios. Ele cita o pensamento pagão prevalecente na sua época: “Os deuses ocupam as regiões mais elevadas, os homens as mais baixas, os demônios a região intermediária... Eles têm a imortalidade do corpo, mas as paixões da mente em comum com os homens.”. No livro VII de A Cidade de Deus (iniciado em 413), Agostinho assimila essa antiga tradição, substitui os deuses por Deus, e converte os demônios em diabos – afirmando que eles são, sem exceção, malignos. Não tem virtudes redentoras. São a fonte de todo o mal espiritual e material. Ele os chama de “animais aéreos [...] muito ansiosos por infligir dano, totalmente opostos à retidão, inchados de orgulho, pálidos de inveja, sutis no engano.” Podem se declarar mensageiros entre Deus e os homens, disfarçando-se como anjos do Senhor, mas essa sua atitude é uma armadilha que nos leva à destruição. Podem assumir qualquer forma, e sabem muitas coisas – “demônio” significa “conhecimento” em grego1, especialmente sobre o mundo material. Por mais inteligentes que sejam, não têm caridade Atacam “as mentes cativas e ludibriadas dos homens”, escreveu Tertuliano. “Eles têm a sua moradia no ar, as estrelas são os seus vizinhos, e as suas relações são com as nuvens”.
No século XI, o influente teólogo, filósofo e político bizantino de reputação duvidosa, Miguel Psellos, descreveu os demônios com as seguintes palavras:

Esses animais existem em nossa própria vida, que é repleta de paixões, pois sua presença é abundante nas paixões, e o lugar que habitam é o da matéria, como também a ela pertencem a sua categoria e classe. Por essa razão, também estão sujeitos a paixões a elas acorrentados.

Um certo Richalmus, abade de Schönthal, escreveu ao redor de 1270 um tratado completo sobre demônios, rico em experiências diretas: ele vê (mas somente de olhos fechados) inúmeros demônios malévolos, como grãos de poeira, zunindo ao redor de sua cabeça . e da cabeça de todos os demais. Apesar de ondas sucessivas de visões de mundo racionalistas, persas, judaicas, cristãs e muçulmanas, apesar do fermento social, político e filosófico revolucionário, a existência, grande parte do caráter e até o nome dos demônios permaneceram inalterados de Hesíodo até as Cruzadas.
Os demônios, os “poderes do ar”, descem do céu e têm relações sexuais ilícitas com as mulheres. Agostinho acreditava que as bruxas eram o produto dessas uniões proibidas. Na Idade Média, assim como na Antiguidade clássica, quase todo mundo acreditava nessas histórias. Os demônios eram também chamados diabos ou anjos caídos. Os sedutores demoníacos das mulheres eram denominados íncubos; os dos homens, súcubos. Há casos em que as freiras falavam, com algum atordoamento, de uma semelhança extraordinária entre o íncubo e o padre confessor ou o bispo, e despertavam na manhã seguinte, segundo um cronista do século XV, “descobrindo-se sujas como se tivessem estado com um homem”. Há relatos semelhantes na China antiga, só que em haréns, e não em conventos. São tantas as mulheres que relataram casos com íncubos, argumentava o escritor religioso presbiteriano Richard Baxter (em seu livro Century of the world of spirits, 1691), “que é impudência negá-los”.1
Ao seduzir, os íncubos e súcubos eram sentidos como um peso sobre o peito do sonhador. Apesar de seu significado latino, mare é a palavra do inglês antigo para íncubo, e nightmare (pesadelo) significava originalmente o demônio que se senta sobre o peito dos adormecidos, atormentando-os com sonhos. Em A vida de santo Antônio, de Atanásio (escrita em torno de 360), os demônios são descritos movimentando-se à vontade em quartos trancados; 1400 anos mais tarde, em sua obra De daemonialitae, o erudito franciscano Ludovico Sinistrari nos assegura que os demônios passam através das paredes. A existência exterior dos demônios transcorreu quase inteiramente sem questionamentos desde a Antiguidade até o final da Idade Média. Maimônides negava a sua realidade, mas a maioria esmagadora dos rabinos acreditava em dibuks. Um dos poucos casos que consegui encontrar, em que se chega a sugerir que os demônios poderiam ser internos, gerados em nossas mentes, é quando perguntam a Abba Poemen – um dos padres do deserto da Igreja primitiva:
- Como é que os demônios lutam contra mim?
- Os demônios lutam contra você? – perguntou o padre Poemen por sua vez – Os nossos próprios desejos se tornam demônios, e são eles que nos atacam.
As atitudes medievais para com os íncubos e súcubos foram influenciadas pelo livro de Macróbio do século IV, Comentário sobre o sonho de Cipião, que teve dezenas de edições antes do Iluminismo europeu. Macróbio descrevia fantasmas (phantasma) vistos “no intervalo entre o estado desperto e o cochilo”. O sonhador “imagina” os fantasmas como predatórios. Macróbio tinha um lado cético que seus leitores medievais tendiam a ignorar.
A obsessão com os demônios começou a atingir um crescendo quando, em sua famosa bula de 1484, o papa Inocêncio VIII declarou:

Tem chegado a nossos ouvidos que membros de ambos os sexos não evitam manter relações com anjos, íncubos e súcubos malignos, e que por
meio de suas feitiçarias, palavras mágicas, amuletos e conjuros eles sufocam, extinguem e abortam os filhos das mulheres,

além de gerar muitas outras calamidades. Com essa bula, Inocêncio dava início à acusação, tortura e execução sistemáticas de inumeráveis “bruxas” em toda a Europa. Elas eram culpadas do que Agostinho descrevia como “o ato criminoso de bulir com o mundo invisível”. Apesar do imparcial “membros de ambos os sexos” na linguagem da bula, não causou surpresa o fato de as meninas e as mulheres terem sido as principais perseguidas.
Muitos protestantes influentes dos séculos seguintes, apesar de suas diferenças com a Igreja Católica, adotaram visões quase idênticas. Até humanistas como Erasmo de Roterdã e Thomas More acreditavam em bruxas. “Não acreditar em bruxarias”, disse John Wesley, o fundador do metodismo, “é na verdade não acreditar na Bíblia”. William Blackstone, o famoso jurista, em seus Commentaries on the laws of England (1765), afirmava: “Negar a possibilidade ou, mais ainda, a existência real da bruxaria e da feitiçaria é contradizer a palavra de Deus revelada em várias passagens do Antigo e do Novo Testamento”.
Inocêncio elogiava “nossos queridos filhos Henry Kramer e James Sprenger”, que “foram nomeados, por Cartas Apostólicas, inquisidores dessas [de]pravações heréticas”. Se “as abominações e enormidades em questão permanecerem impunes”, as almas de multidões enfrentarão a danação eterna.
O papa indicou Kramer e Sprenger para escreverem uma análise abrangente, usando toda a armadura acadêmica do final do século XV. Com citações exaustivas da Escritura e de eruditos antigos e modernos, eles produziram o Malleus maleficarum, o “Martelo das bruxas” – descrito apropriadamente como um dos livros mais terríveis da história humana. Thomas Ady, em A candle in the dark, acusou-o de ser “doutrinas & invenções infames”, “mentiras e impossibilidades horríveis”, servindo para esconder “uma crueldade sem paralelo dos ouvidos do mundo”. O que Malleus significa, mais ou menos, é que, se a pessoa for acusada de bruxaria, ela é uma bruxa. A tortura é um meio infalível de demonstrar a veracidade da acusação. O réu não tem direitos. Não há oportunidade de acareação com os acusadores. Pouca atenção é dada à possibilidade de que as acusações sejam causadas por objetivos ímpios . inveja, vingança ou a ganância dos inquisidores, que rotineiramente confiscavam para seu proveito pessoal as propriedades do acusado. Esse manual técnico para torturadores também inclui métodos de castigo talhados para liberar os demônios do corpo da vítima, antes que o processo a matasse. Com o Malleus na mão e o incentivo do papa garantido, os inquisidores começaram a surgir por toda a Europa.
Os processos logo se tornaram fraudulentos no item despesas. Todos os custos da investigação, julgamento e execução eram pagos pela acusada ou seus parentes . até as diárias dos detetives particulares contratados para espioná-la, o vinho para os seus guardas, os banquetes para os seus juízes, as despesas de viagem de um mensageiro enviado para buscar um torturador mais experiente em outra cidade, e os feixes de lenha, o alcatrão e a corda do carrasco. Além disso, os membros do tribunal ganhavam uma gratificação para cada feiticeira queimada. O que sobrava das propriedades da bruxa condenada, se ainda houvesse alguma coisa, era dividido entre a Igreja e o Estado. Quando esse assassinato e roubo em massa, legal e moralmente sancionados, se tornaram institucionalizados, quando surgiu uma imensa burocracia para servi-lo, a atenção se desviou das velhas megeras pobres para os membros das classes média e alta de ambos os sexos.
Quanto mais as pessoas, sob tortura, confessavam participar de bruxarias, mais difícil ficava sustentar que toda a história não passava de fantasia. Como cada uma das “bruxas” era forçada a implicar outras, o número crescia exponencialmente. Tudo isso constituía “provas assustadoras de que o Diabo ainda está vivo”, como mais tarde se afirmou na América do Norte por ocasião dos julgamentos das bruxas de Salem. Numa era crédula, o testemunho mais fantástico era levado a sério – de que dezenas de milhares de bruxas tinham se reunido para um sabá em praças públicas da França, ou de que 12 mil feiticeiras escureceram os céus ao voar para a Terra Nova. A Bíblia tinha aconselhado: “Não deves tolerar que uma bruxa viva”. Legiões de mulheres foram queimadas até a morte.2 E as torturas mais horrendas eram rotineiramente aplicadas a todas as rés, jovens ou velhas, depois que os padres abençoavam os instrumentos de tortura. O próprio Inocêncio morreu em 1492, após tentativas frustradas de mantê-lo vivo por meio de transfusões (o que resultou na morte de três meninos) e amamentação no peito de uma ama-de-leite. Foi pranteado pela amante e pelos filhos de ambos.
Na Grã-Bretanha, empregavam-se perseguidores de bruxas, também chamados “alfinetadores”, que recebiam um belo prêmio para cada menina ou mulher que entregavam para execução. Não eram estimulados a ser cautelosos em suas acusações. Em geral procuravam .marcas do diabo – cicatrizes, marcas de nascença ou nevos – que, ao serem picadas com um alfinete, não doíam, nem sangravam. Uma simples prestidigitação dava a impressão de que o alfinete penetrava fundo na carne da bruxa. Quando não havia marcas aparentes, bastavam as “marcas invisíveis”. Sobre o patíbulo, um alfinetador da metade do século XVII “confessou que provocara a morte de mais de 220 mulheres na Inglaterra e Escócia, ao preço de vinte xelins cada”.2
Nos julgamentos das bruxas, evidências atenuantes ou testemunhas de defesa eram inadmissíveis. De qualquer modo, era quase impossível apresentar álibis convincentes para as bruxas acusadas: as regras de evidência tinham um caráter especial. Por exemplo, em mais de um caso o marido atestava que sua mulher estava dormindo nos braços dele no exato momento em que era acusada de estar brincando com o diabo num sabá de bruxas; mas o arcebispo explicava pacientemente que um demônio tomara o lugar da mulher. Os maridos não deviam imaginar que seus poderes de percepção podiam superar os poderes da simulação de Satã. As belas jovens eram forçosamente entregues às chamas.
Havia fortes elementos eróticos e misóginos. como era de se esperar numa sociedade sexualmente reprimida e dominada pelos homens, em que os inquisidores eram tirados da classe de padres pretensamente celibatários. Nos julgamentos, prestava-se bastante atenção à qualidade e à quantidade de orgasmos nas supostas cópulas das rés com os demônios ou com o Diabo (embora Agostinho tivesse se mostrado seguro de que “não podemos chamar o Diabo de fornicador”), e à natureza do “membro” do Diabo (frio, em todos os relatos). As “marcas do Diabo” eram encontradas “em geral sobre os seios ou nas partes pudendas”, segundo o livro escrito por Ludovico Sinistrari em 1700. Em consequência, raspavam-se os pêlos púbicos e as genitálias eram cuidadosamente inspecionadas por inquisidores do sexo masculino. Na imolação da jovem de vinte anos, Joana D.Arc, depois que seu vestido pegou fogo, o carrasco de Rouen apagou as chamas para que os espectadores pudessem ver “todos os segredos que podem ou devem existir numa mulher”.
A crônica dos que foram consumidos pelo fogo, somente na cidade alemã de Würtzburg, e apenas no ano de 1598, apresenta estatísticas e permite que nos confrontemos com um pouco da realidade humana:

O intendente do Senado, chamado Gering; a velha sra. Kanzler; a mulhergorda do alfaiate; a cozinheira do sr. Mengerdorf; um estranho; umamulher estranha; Baunach, senador, o cidadão mais gordo de Würtzburg; o velho ferreiro da corte; uma velha; uma menina de nove ou dez anos; uma menina mais moça, sua irmãzinha; a mãe das duas meninas acima mencionadas; a filha de Liebler; a filha de Goebel, a menina mais bonita de Würtzburg; um estudante que sabia muitas línguas; dois meninos do Minster, cada um com doze anos; a filhinha de Stepper; a mulher que guardava o portão da ponte; uma velha; o filhinho do intendente do conselho da cidade; a mulher de Knertz, o açougueiro; a filhinha de colo do dr. Schultz; uma menina cega; Schwartz, cônego em Hatch...

E assim por diante. Alguns recebiam atenção humanitária especial: “A filhinha de Valkenberger foi executada e queimada privadamente”. Houve 28 imolações públicas, cada uma com quatro a seis vítimas em média, nessa pequena cidade num único ano. Isso era um microcosmo do que estava acontecendo por toda a Europa. Ninguém sabe quantos foram mortos ao todo – talvez centenas de milhares, talvez milhões. Os responsáveis pela acusação, tortura, julgamento, morte na fogueira e justificação eram altruístas. Perguntem a eles.
Eles não podiam estar errados. As confissões de bruxaria não podiam ser alucinações, por exemplo, nem tentativas desesperadas de satisfazer os inquisidores e interromper a tortura. Nesse caso, explicava o juiz de bruxas Pierre de Lancre (em seu livro de 1612, Description of the inconstancy of evil angels), a Igreja católica estaria cometendo um grande crime ao queimar as bruxas. Aqueles que apresentam tais hipóteses estão, portanto, atacando a igreja e ipso facto cometendo um pecado mortal. Puniam-se os que criticavama morte das bruxas na fogueira e, em alguns casos, eles próprios eram queimados. Os inquisidores e os torturadores estavam fazendo a obra de Deus. Estavam salvando almas. Estavam derrotando os demônios.
A bruxaria não era certamente o único delito que merecia tortura e morte na fogueira. A heresia era um crime ainda mais sério, e tanto católicos como protestantes o puniam com crueldade. No século XVI, o erudito William Tyndale teve a temeridade de pensar em traduzir o Novo Testamento para o inglês. Mas se as pessoas pudessem ler a Bíblia em sua própria língua, e não em latim arcaico, talvez formassem opiniões religiosas próprias e independentes. Poderiam conceber sua própria comunicação privada com Deus. Era um desafio à segurança de emprego dos padres católicos romanos. Quando Tyndale tentou publicar a sua tradução, foi caçado e perseguido por toda a Europa. Acabou capturado, garroteado e depois, por boas razões, queimado na fogueira. Seus exemplares do Novo Testamento (que um século mais tarde se tornaram a base da refinada tradução do rei Jaime) foram então procurados de casa em casa por destacamentos armados . cristãos defendendo piedosamente o cristianismo, ao impedir que outros cristãos conhecessem as palavras de Cristo. Esse estado de espírito, esse clima de absoluta certeza de que o conhecimento deve ser recompensado com a tortura e a morte, era pouco auspicioso para os acusados de bruxaria.
Queimar bruxas é uma característica da civilização ocidental que, com exceções políticas ocasionais, tem declinado desde o século XVI. Na última execução judicial de feiticeiras na Inglaterra, uma mulher e sua filha de nove anos foram enforcadas. O seu crime era ter provocado uma tempestade quando despiram as meias. Na nossa época, bruxas e djins são uma presença constante em brincadeiras infantis, o exorcismo dos demônios ainda é praticado pela Igreja católica romana e outras religiões, e os adeptos de um culto ainda denunciam como feitiçaria as práticas rituais de outro. Ainda empregamos a palavra “pandemônio” (literalmente, todos os demônios). Ainda se diz que uma pessoa enlouquecida e violenta é demoníaca. (Foi só no século XVIII que a doença mental deixou de ser em geral atribuída a causas sobrenaturais; até a insônia tinha sido considerada um castigo infligido por demônios.) Mais da metade dos norte-americanos declaram aos pesquisadores de opinião que .acreditam. na existência do Diabo, e 10% tiveram contato com ele, experiência que Martinho Lutero afirmava ter regularmente. Num .manual de guerra espiritual. de 1992, intitulado Prepare for war, Rebecca Brown nos informa que o aborto e o sexo fora do casamento “resultarão quase sempre em infestação demoníaca”; que a meditação, a ioga e as artes marciais são construídas de modo a levar os cristãos ingênuos a cultuar os demônios; e que “o rock não aconteceu pura e simplesmente, foi um plano arquitetado com muito cuidado por ninguém menos do que o próprio Satã”. Às vezes, “as pessoas amadas ficam diabolicamente presas e cegas”. A demonologia ainda é, hoje em dia, parte de muitos credos sérios.
E o que é que os demônios fazem? No Malleus, Kramer e Sprenger revelam que “os diabos [...] procuram interferir no processo de cópula e concepção normal, obtendo sêmen humano e transferindo-o eles próprios”. A inseminação artificial demoníaca na Idade Média remonta pelo menos a são Tomás de Aquino, que nos diz em Sobre a Trindade que “os demônios podem transferir o sêmen que coletaram e injetá-lo nos corpos dos outros”. Seu contemporâneo, são Boaventura, entra em mais detalhes: os súcubos “se entregam aos machos e recebem o seu sêmen; com habilidade astuciosa, os demônios preservam a sua potência, e mais tarde, com a permissão de Deus, tornam-se íncubos e despejam o sêmen em repositórios feminino”. Ao crescer, os produtos dessas uniões ímpias mediadas pelos demônios são também visitados pelos demônios. Forja-se um laço sexual entre várias gerações e entre várias espécies. E lembramos que essas criaturas são famosas por voar; na verdade, elas habitam o ar.
Não há nave espacial nessas histórias. Mas a maioria dos elementos centrais das histórias de rapto por alienígenas está presente, inclusive os seres não humanos sexualmente obsessivos que vivem no céu, passam através de paredes, comunicam-se por telepatia e realizam experiências reprodutoras com a espécie humana. A não ser que nós acreditemos que os demônios realmente existem, como podemos compreender um sistema de crença tão estranho, adotado por todo o mundo ocidental (inclusive por aqueles considerados os mais sábios dentre nós), reforçado por experiências pessoais
em todas as gerações, e ensinado pela Igreja e pelo Estado? Existe alguma alternativa real além de uma ilusão partilhada que se baseia nas ligações e na química do cérebro?
No Gênesis, lemos sobre anjos que copulam com “as filhas dos homens”. Os mitos culturais da Grécia e Roma antigas falavam de deuses que apareciam às mulheres sob a forma de touros, cisnes ou chuvas de ouro e as fecundavam. Em uma tradição cristã primitiva, a filosofia não provinha do engenho humano, mas de conversas íntimas com os demônios – os anjos caídos revelavam os segredos do Céu para as suas consortes humanas. Histórias com elementos semelhantes aparecem em culturas de todo o mundo. Equivalentes aos íncubos são os djins árabes, os sátiros gregos, os bhuts hindus, os hotua porco de Samoa, os dusii celtas e muitos outros. Numa época de histeria em relação aos demônios, era bastante fácil atribuir características demoníacas aos que temíamos ou odiávamos. Assim, dizia-se que Merlin fora concebido por um íncubo. O mesmo se dizia de Platão, Alexandre, o Grande, Augusto e Martinho Lutero. De vez em quando todo um povo . por exemplo, os hunos ou os habitantes de Chipre . era acusado por seus inimigos de ter sido gerado pelos demônios.
Na tradição talmúdica, o súcubo arquetípico era Lilith, a quem Deus criou do barro junto com Adão. Ela foi expulsa do Éden por insubordinação – não a Deus, mas a Adão. Desde então, ela passa as suas noites seduzindo os descendentes de Adão. No Irã antigo e em muitas outras culturas, acreditava-se que as ejaculações noturnas de sêmen eram provocadas por súcubos. Santa Teresa de Ávila descreveu uma vívida relação sexual com um anjo –  um anjo de luz, e não da escuridão, disso ela tinha certeza –, experiência também vivenciada por outras mulheres mais tarde santificadas pela Igreja Católica. Cagliostro, o mágico e trapaceiro do século XVIII, deu a entender que ele, como Jesus de Nazaré, era produto da união “entre os filhos do céu e da terra”.
Em 1645, uma adolescente da Cornualha, Anne Jefferies, foi encontrada grogue, encolhida no chão. Muito mais tarde, ela lembrou ter sido atacada por meia dúzia de homenzinhos, conduzida paralisada a um castelo no ar, seduzida e trazida de volta para casa. Ela chamava os homenzinhos de duendes. (Para muitos cristãos piedosos, como para os inquisidores de Joana D.Arc, essa distinção era irrelevante. Os duendes eram demônios, pura e simplesmente.) Eles voltaram para aterrorizá-la e atormentá-la. No ano seguinte, ela foi presa por bruxaria. Os duendes têm tradicionalmente poderes mágicos, e podem causar paralisia ao simples toque de suas mãos. O tempo transcorre de forma mais lenta no país encantado. Os duendes têm problemas de reprodução, por isso fazem sexo com seres humanos e roubam os bebês dos berços . deixando às vezes um duende substituto, uma “criança trocada”. Agora esta me parece uma boa pergunta: se Anne Jefferies tivesse crescido numa cultura que fizesse propaganda de alienígenas em vez de duendes, e de UFOs em vez de castelos no ar, a sua história seria diferente, em qualquer aspecto significativo, das narradas pelas “vítimas de rapto por alienígenas”?
Em seu livro de 1982, The terror that comes in the night: an experiencecentered study of supernatural assault traditions, David Hufford fala de um executivo de trinta e poucos anos, com educação superior, que se lembrava de um verão passado na casa de sua tia, quando ainda era adolescente. Certa noite, ele viu luzes misteriosas movendo-se no ancoradouro. Mais tarde, adormeceu. De sua cama, vislumbrou então uma figura branca e luminosa subindo a escada. Ela entrou no seu quarto, parou e depois disse . numa espécie de anticlímax, a meu ver: “É o linóleo”. Em algumas noites, era a figura de uma velha; em outras, a de um elefante. Às vezes o jovem estava convencido de que toda a história era um sonho; outras vezes tinha certeza de estar acordado. Ficava premido em sua cama, paralisado, incapaz de se mover ou gritar. O coração disparava. Ele ficava sem fôlego. Eventos semelhantes se passaram em muitas noites consecutivas. O que está acontecendo nesse caso? Essas ocorrências se deram antes que raptos por alienígenas fossem divulgados por toda parte. Se o jovem tivesse conhecimento dos raptos por alienígenas, a sua velha não teria apresentado uma cabeça e olhos maiores?
Em várias passagens famosas de O declínio e queda do Império Romano, Edward Gibbon descreveu o equilíbrio entre a credulidade e o ceticismo no final da Antiguidade clássica:

A credulidade desempenhava o papel da fé; permitia-se que o fanatismo assumisse a linguagem da inspiração, e os efeitos do acaso ou dos planos eram atribuídos a causas sobrenaturais [...]
Na época moderna [Gibbon está escrevendo na metade do século XVIII], um ceticismo latente e até involuntário adere à mais piedosa das disposições. Admitir verdades sobrenaturais é muito menos uma aprovação ativa do que uma aquiescência fria e passiva. Há muito tempo acostumada a observar e respeitar a ordem invariável da natureza, a nossa razão, ou pelo menos a nossa imaginação, não está suficientemente preparada para suportar a ação visível da divindade. Mas nas primeiras eras do cristianismo, a situação da humanidade era extremamente diferente. Os mais curiosos, ou os mais crédulos, entre os pagãos eram frequentemente persuadidos a entrar numa sociedade que afirmava ter realmente poderes milagrosos. Os cristãos primitivos pisavam perpetuamente em terreno místico, e as suas mentes eram exercitadas pelo hábito de acreditar nos acontecimentos mais extraordinários. Sentiam, ou fantasiavam, que de todos os lados eram incessantemente atacados por demônios,consolados por visões, instruídos pela profecia e surpreendentemente salvos do perigo, da doença e até da morte pelas súplicas da Igreja [...].
Eles tinham a firme convicção de que o ar que respiravam estava povoado de inimigos invisíveis; de inumeráveis demônios, que observavam todos os acontecimentos e assumiam todas as formas para aterrorizar e, acima de tudo, para tentar a sua virtude desprotegida. A imaginação e até os sentidos eram enganados pelas ilusões do fanatismo imoderado; e o eremita, que via sua oração de meia-noite ser dominada pelo cochilo involuntário, podia facilmente confundir os fantasmas de horror ou prazer que tinham preenchido o seu sono e os seus sonhos acordados [...].
[A] prática da superstição é tão congenial à multidão que, se as pessoas são forçadas a despertar, elas ainda lamentam a perda de sua visão prazerosa. O seu amor ao maravilhoso e ao sobrenatural, a sua curiosidade em relação a acontecimentos futuros e a sua forte propensão a colocar as suas esperanças e medos além dos limites do mundo visível foram as principais causas que favoreceram o estabelecimento do politeísmo. É tão premente no povo a necessidade de acreditar em alguma coisa que a queda de qualquer sistema mitológico será muito provavelmente seguida pela introdução de algum outro modo de superstição [...].

Vamos deixar de lado o esnobismo social de Gibbon: o diabo também atormentava as classes altas, e até um rei da Inglaterra . Jaime I, o primeiro monarca Stuart . escreveu um livro crédulo e supersticioso sobre os demônios (Daemonologie, 1597). Ele foi também o patrocinador da excelente tradução da Bíblia para o inglês que ainda leva o seu nome. O rei Jaime achava que o tabaco era a .erva daninha do diabo., e várias bruxas foram descobertas por terem o vício dessa droga. Mas, em 1628, ele se tornara um cético rematado . principalmente porque adolescentes foram descobertos fingindo possessão demoníaca, em cujo estado tinham acusado pessoas inocentes de bruxaria. Se consideramos que o ceticismo que Gibbon afirma ter caracterizado a sua época diminuiu na nossa, e se até um pouco da credulidade desenfreada que ele atribui ao final da época clássica ainda sobrevive na nossa, não é de se esperar que alguma coisa semelhante a demônios encontre um nicho na cultura popular do presente?
Como os entusiastas de visitas extraterrestres são rápidos em me lembrar, há certamente outra interpretação desses paralelos históricos: os alienígenas, dizem eles, sempre nos visitaram, intrometendo-se na nossa vida, roubando nossos espermas e ovos, fecundando-nos. Nos tempos antigos, nós os reconhecíamos como deuses, demônios, duendes ou espíritos; só agora compreendemos que são os alienígenas que têm nos enganado durante todos esses milênios. Jacques Vallee tem empregado esse tipo de argumentação. Mas, nesse caso, por que não há virtualmente nenhum relato de discos voadores antes de 1947? Por que nenhuma das principais religiões usa discos como ícones do divino? Por que não nos avisaram sobre os perigos da alta tecnologia? Por que esse experimento genético, seja qual for o seu objetivo, ainda não está completo . milhares de anos ou mais depois de ser iniciado por seres supostamente capazes de realizações tecnológicas muito superiores? Por que enfrentamos tantos problemas, se o programa de reprodução é destinado a aperfeiçoar a nossa espécie?
Seguindo essa linha de argumentação, poderíamos prever que os adeptos atuais das crenças antigas passassem a compreender os “alienígenas” como duendes, deuses ou demônios. Na verdade, várias seitas contemporâneas – os “raelianos”, por exemplo – sustentam que os deuses ou Deus vieram à Terra em UFOs. Algumas vítimas de rapto descrevem os alienígenas, por mais repulsivos que sejam, como “anjos” ou “emissários de Deus”. E há os que ainda acham que se trata de demônios.
Em Communion, de Whitley Streiber, uma narrativa em primeira mão de .rapto por alienígenas., o autor relata:

O que quer que ali estivesse parecia monstruosamente feio, imundo, escuro e sinistro. É claro que eram demônios. Tinham que ser... Ainda me lembro daquela coisa ali agachada, terrivelmente feia, os braços e as pernas parecendo os membros de um grande inseto, os olhos me fitando.

Sabe-se que Streiber está agora aberto à possibilidade de esses terrores noturnos terem sido sonhos ou alucinações.
Os antigos UFOs em The Christian News Encyclopedia, uma compilação fundamentalista, incluem “Obsessão fanática anticristã” e “Cientista acredita que os UFOs são obra do demônio”. O Projeto de Falsificações Espirituais de Berkeley, Califórnia, ensina que os UFOs têm origem demoníaca; a Igreja Aquariana do Serviço Universal de McMinnville, Oregon, que todos os alienígenas são hostis. Um boletim de 1993 de “Comunicações da consciência cósmica” nos informa que os ocupantes dos UFOs consideram os humanos animais de laboratório, querem que nós os adoremos, mas tendem a ser intimidados pela Oração ao Senhor. Algumas vítimas de rapto foram expulsas de suas congregações religiosas evangélicas; suas histórias se pareciam demais com o satanismo. Um tratado fundamentalista de 1980, The cult explosion, escrito por Dave Hunt, revela que

os UFOs [...] evidentemente não são concretos, e parecem ser manifestações demoníacas de outra dimensão calculadas para alterar o modo de pensar dos homens [...]. [A]s alegadas entidades UFO que presumivelmente estabeleceram contato físico com os seres humanos sempre pregaram as mesmas quatro mentiras que a serpente apresentou a Eva [...]. [E]stes seres são demônios e estão se preparando para o Anticristo.

Várias seitas sustentam que os UFOs e os raptos por alienígenas são premonições do “fim do mundo”.
Se os UFOs vêm de outro planeta ou de outra dimensão, será que foram enviados pelo mesmo Deus que nos tem sido revelado em qualquer uma das religiões predominantes? Nada nos fenômenos dos UFOs, reza a queixa fundamentalista, exige a crença num Deus único e verdadeiro, embora muita coisa contradiga o Deus retratado na Bíblia e na tradição cristã. The New Age: a Christian critique, de Ralph Rath (1990), discute os UFOs . e, como é típico nessa literatura, com extrema crueldade. Cumpre o seu propósito de aceitá-los como reais e de vilipendiá-los como instrumentos de Satã e do Anticristo, em vez de usar a lâmina do ceticismo científico. Essa ferramenta, uma vez afiada, faria mais do que apenas uma heresiotomia limitada.
Em seu best-seller religioso Planet Earth . 2000 A. D., Hal Lindsey, o autor fundamentalista cristão, descreve:

Estou plenamente convencido de que os UFOs são reais [...]. São operados
por seres alienígenas de grande inteligência e poder [...]. Acredito que esses seres não são apenas extraterrestres, mas têm origem sobrenatural. Para ser franco, acho que são demônios [...] parte de uma trama satânica.

E qual é a evidência para essa conclusão? São principalmente os versículos 11 e 12 de Lucas, capítulo 21, em que Jesus fala sobre “grandes sinais do Céu” – nada semelhante a um UFO é descrito . nos últimos dias. Tipicamente, Lindsey ignora o versículo 32 em que Jesus deixa bem claro que não está falando sobre o século XX, mas sobre o século I.
Há também uma tradição cristã segundo a qual a vida extraterrestre não pode existir. Em Christian News de 23 de maio de 1994, por exemplo, W. Gary Crampton, doutor em teologia, nos explica a razão:

A Bíblia, explícita ou implicitamente, trata de todas as áreas da vida; ela nunca nos deixa sem resposta. Em nenhum trecho, a Bíblia afirma ou nega de forma declarada a vida extraterrestre inteligente. Implicitamente, entretanto, a Sagrada Escritura nega, sim, a existência desses seres, com isso também negando a possibilidade de discos voadores [...]. A Sagrada Escritura considera a Terra como o centro do Universo [...]. Segundo Pedro, um Salvador .saltando de planeta em planeta. está fora de cogitação. Eis uma resposta para a vida inteligente em outros planetas. Se esses seres existissem, quem os redimiria? Certamente não seria Cristo [...]. As experiências que não se coadunam com os ensinamentos da Sagrada Escritura devem ser sempre rejeitadas como falaciosas. A Bíblia tem o monopólio da verdade.

Mas muitas outras seitas cristãs – os católicos romanos, por exemplo – são completamente liberais, sem aprender objeções a priori contra alienígenas e UFOs e sem insistir na sua existência.
No começo dos anos 60, eu afirmava que as histórias de UFOs eram criadas principalmente para satisfazer desejos religiosos. Numa época em que a ciência tem complicado a adesão acrítica às religiões dos velhos tempos, é oferecida uma alternativa à hipótese de Deus. Vestidos com jargão científico, tendo os seus imensos poderes “explicados” por uma terminologia superficialmente científica, os deuses e os demônios de outrora descem do céu para nos assombrar, para oferecer visões proféticas e para nos tantalizar com visões de um futuro mais promissor; o nascimento de uma religião de mistério na era espacial.
O folclorista Thomas E. Bullard escreveu em 1989 que “os relatos de raptos por alienígenas parecem novas versões das velhas tradições de encontros sobrenaturais, com os alienígenas desempenhando os papéis funcionais de seres divinos”. Ele conclui:

A ciência pode ter expulsado os fantasmas e as bruxas das nossas crenças, mas com igual rapidez preencheu o espaço vazio com alienígenas que desempenham as mesmas funções. Só os enfeites exteriores dos extraterrestres são novos. Todo o medo e todos os dramas psicológicos de lidar com o problema parecem simplesmente ter encontrado mais uma vez o seu lugar, constituindo como sempre a atividade do reino das lendas, onde as coisas explodem à noite.

Será possível que pessoas de todas as épocas e lugares experimentem de vez em quando alucinações vívidas e realistas, de conteúdo quase sempre sexual, sobre raptos por criaturas estranhas, telepáticas e aéreas que desaparecem aos poucos pelas paredes – sendo os detalhes preenchidos pelos estilos culturais predominantes, sugados do Zeitgeist? Outras pessoas, que não viveram pessoalmente a experiência, acham-na perturbadora e de certo modo familiar. Passam a história adiante. Logo ela adquire vida própria, inspira outros a tentar compreender as suas próprias visões e alucinações, e entra no reino do folclore, do mito e da lenda. A conexão entre o conteúdo de alucinações espontâneas do lobo temporal e o paradigma do rapto por alienígenas é coerente com essa hipótese.
Quando é do conhecimento de todos que os deuses descem à Terra, nós talvez tenhamos alucinações com deuses; quando todos nós estamos familiarizados com demônios, aparecem os íncubos e os súcubos; quando os duendes são aceitos por toda parte, vemos duendes; numa era de espiritualismo, encontramos espíritos; e quando os antigos mitos se enfraquecem e começamos a pensar que os seres extraterrestres são plausíveis, é para eles que tendem as nossas imagens hipnagógicas.
Trechos de canções ou de línguas estrangeiras, imagens, acontecimentos que presenciamos, histórias que ouvimos por acaso na infância podem ser recordados com acuidade décadas mais tarde, sem nenhuma lembrança consciente de como entraram em nossas cabeças. “[N]as febres violentas, homens, de todos ignorantes, falaram em línguas antigas”, diz Herman Melville em Moby Dick; .e [...] quando o mistério é sondado, sempre se descobre que, em suas infâncias totalmente esquecidas, essas línguas antigas tinham sido realmente faladas ao seu redor.. Em nossa vida diária, incorporamos sem esforço e inconscientemente normas culturais que transformamos em coisas nossas.
Uma absorção semelhante de temas está presente nas “alucinações de comandos” esquizofrênicas. Nesse caso, as pessoas sentem que uma figura mítica ou imponente lhes ordena o que fazer. Recebem ordens para assassinar um líder político ou um herói popular, para derrotar os invasores britânicos ou para causar danos a si mesmas, porque é o desejo de Deus, de Jesus, do Diabo, dos demônios, dos anjos ou . recentemente . dos alienígenas. O esquizofrênico fica paralisado pelo comando claro e poderoso de uma voz que ninguém mais consegue escutar, e que o sujeito deve identificar de alguma forma. Quem daria uma ordem dessas? Quem falaria dentro de nossas cabeças? A cultura em que fomos criados oferece uma resposta.
Pensem na força das imagens repetitivas na propaganda, especialmente para os espectadores e leitores sugestionáveis. Elas podem nos induzir a acreditar em quase tudo . até na idéia de que fumar cigarros é agradável. Em nossa época, os supostos alienígenas são o tema de inúmeras histórias, romances, dramas de TV e filmes de ficção científica. Os UFOs são uma presença regular nos tablóides semanais empenhados em falsificação e mistificação. Segundo a revista Set (apud Variety), ET é o filme de maior bilheteria na história do cinema. O filme de maior bilheteria de todos os tempos versa sobre alienígenas muito semelhantes aos descritos pelas vítimas de sequestro. As histórias de rapto por alienígenas eram relativamente raras até 1975, quando uma crédula dramatização televisiva do caso Hill foi ao ar; outro salto para a notoriedade pública ocorreu depois de 1987, quando o pretenso relato em primeira mão de Streiber, com uma ilustração obcecante de um “alienígena” de olhos grandes na capa, se tornou best-seller. Em oposição, ultimamente ouvimos muito pouco a respeito de íncubos, gnomos e duendes. O que lhes aconteceu?
Longe de serem globais, as histórias de rapto por alienígenas são desapontadoramente locais. A imensa maioria emana da América do Norte. Mal transcendem a cultura norte-americana. Em outros países, são relatados alienígenas robôs, com cabeça de pássaro, com cabeça de inseto, semelhantes a répteis, loiros e de olhos azuis (os últimos, previsivelmente, no norte da Europa). A cada grupo de alienígenas é atribuído um comportamento diferente. Os fatores culturais desempenham, de forma nítida, um papel importante.
Muito antes de os termos “disco voador” ou “UFO” serem inventados, a ficção científica estava repleta de “homenzinhos verdes” e “monstros com olhos de inseto”. De alguma forma, seres pequenos e sem pêlos, com cabeças (e olhos) grandes, têm constituído o padrão de nossos alienígenas há bastante tempo. Era possível vê-los rotineiramente nas revistas sensacionalistas de ficção científica dos anos 20 e 30 (e, por exemplo, na ilustração de um marciano enviando mensagens de rádio para a Terra, no número de dezembro de 1937 da revista Short Wave and Television). Essa imagem remonta talvez à descrição de nossos descendentes distantes feita pelo pioneiro britânico da ficção científica, H. G. Wells. Ele afirmava que os seres humanos haviam evoluído de primatas que tinham cérebros menores, porém mais pêlos, com uma energia que superava em muito os acadêmicos vitorianos; extrapolando essa tendência para o futuro remoto, sugeria que nossos descendentes seriam quase desprovidos de pêlos, com imensas cabeças, embora mal pudessem se locomover sozinhos. Os seres avançados de outros mundos poderiam ter características parecidas.
O extraterrestre moderno típico, conforme relatado na América do Norte nos anos 80 e início dos 90, é pequeno, com olhos e cabeça desproporcionalmente grandes, feições pouco desenvolvidas, sem sobrancelhas ou genitália, e com uma pele cinzenta lisa. Estranhamente, ele me lembra um feto mais ou menos na duodécima semana de gravidez ou uma criança faminta. Por que tantos de nós estariam obcecados por fetos ou crianças mal nutridas, e imaginando que eles nos atacam e manipulam sexualmente, é uma questão interessante.
Nos últimos anos, alienígenas diferentes do padrão cinzento têm aparecido com mais frequência na América do Norte. O psicoterapeuta Richard Boylan, de Sacramento, diz:

Há tipos de um metro a um metro e vinte de altura; tipos de um metro e meio a um metro e oitenta de altura; tipos de dois metros e dez a dois metros e quarenta de altura, tipos de três, quatro e cinco dedos, com enchimentos nas pontas ou ventosas de sucção; dedos com membrana interdigital ou não; grandes olhos amendoados inclinados para cima, para fora ou horizontalmente; em alguns casos, grandes olhos ovóides sem a inclinação amendoada; extraterrestres com pupilas rasgadas, outros tipos diferentes de corpo . o assim chamado tipo louva-a-deus, os tipos semelhantes a répteis... Há alguns de que ouço falar várias vezes. Com alguns relatos exóticos e de caso único, tendo a ser mais cauteloso, até obter um conjunto de histórias mais corrorborativas.

Apesar dessa aparente variedade de extraterrestres, a síndrome do rapto por UFO retrata, a meu ver, um Universo banal. A forma dos supostos alienígenas é marcada por um fracasso de imaginação e uma preocupação com interesses humanos. Nem um único ser apresentado em todas essas histórias é tão espantoso quanto seria uma cacatua para quem nunca tivesse contemplado um pássaro. Qualquer livro didático de protozoologia, bacteriologia ou micologia contém maravilhas que eclipsam as mais exóticas descrições das vítimas dos raptos por extraterrestres. Os que acreditam nesses relatos tomam os elementos comuns em suas histórias como sinais de verossimilhança, e não como prova de que as histórias foram construídas a partir de uma cultura e biologia partilhadas.


1 Ciência significa conhecimento em latim. Uma disputa de jurisdição fica sugerida, mesmo que não se aprofunde o exame da questão. Além disso, na mesma obra: .A produção de tempestades pelas bruxas é atestada por tantas pessoas que acho desnecessário citar os seus testemunhos. O teólogo Meric Casaubon argumentava em seu livro de 1668, Of credulity and incredulity . que as bruxas devem existir porque, afinal de contas, todo mundo acredita nelas. Qualquer coisa em que um grande número de pessoas acredita deve ser verdade.

2 A Santa Inquisição adotava esse método de execução aparentemente para garantir uma concordância literal com uma bem-intencionada sentença da lei canônica (Concílio de Tours, 1163: “A Igreja abomina o derramamento de sangue” No território sombrio dos caçadores de gratificações e informantes pagos, a corrupção torpe é frequentemente a regra . em todo o mundo e em toda a história humana. Tomando um exemplo quase ao acaso, em 1994, por uma quantia de dinheiro, alguns inspetores postais de Cleveland concordaram em fazer investigações secretas e desmascarar os transgressores da lei; eles então inventaram ações penais contra 32 trabalhadores postais inocentes.



SAGAN, Carl. O mundo assombrado pelos demônios: a ciência vista como uma vela no escuro.
São Paulo: Companhia das Letras, 1996. Cap. 7 – O mundo assombrado pelos demônios. 

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