Cautio criminalis (Precauções
para os promotores)
*Extraído do livro “Cautio
criminalis”
Friedrich von Spee
1. Inacreditavelmente, entre nós, alemães, e especialmente (tenho vergonha
de dizer) entre os católicos, existem superstições populares, inveja, calúnias,
difamações, insinuações e coisas do gênero, que, sem ser punidas nem refutadas,
provocam suspeitas de bruxaria. Já não é Deus, nem a natureza, mas são as
bruxas as responsáveis por tudo.
2. Por isso, ergue-se um clamor da população para que os magistrados investiguem
as bruxas, a quem só os mexericos populares tornaram tão numerosas.
3. Portanto, os príncipes pedem a seus juízes e conselheiros que abram
processos contra as bruxas.
4. Os juízes mal sabem por onde começar, pois não têm evidência [indicia]
ou prova.
5. Enquanto isso, as pessoas declaram que essa demora é suspeita; e os
príncipes são disso persuadidos por um ou outro informante.
6. Na Alemanha, ofender esses príncipes é uma falta séria, até o clero
aprova tudo o que lhes agrada, sem se importar com quem possa tê-los instigado
(ainda que bem-intencionados).
7. Por fim, os juízes se submetem aos desejos dos príncipes e dão um
jeito de começar os julgamentos.
8. Aos outros juízes que ainda hesitam, com medo de se envolver nessa questão
delicada, é enviado um investigador especial. Nesse campo de investigação,
qualquer inexperiência ou arrogância que o agente demonstrar no desempenho de
sua tarefa é considerado zelo pela justiça. O seu zelo pela justiça é também
estimulado pelas esperanças de lucro, especialmente se for um agente pobre e
ganancioso com uma grande família, pois para cada bruxa queimada recebe como
estipêndio tantos dólares por cabeça, além de taxas e gratificações incidentais
que os agentes investigadores têm permissão de extorquir à vontade daqueles que
convocam.
9. Se os delírios de um louco ou um rumor malicioso e fútil (pois a
prova do escândalo jamais é necessária) apontam alguma velha indefesa, ela é a primeira
a sofrer.
10. No entanto, para evitar a impressão de que ela é indiciada
unicamente com base em rumores, sem outras provas, obtém-se certa presunção de culpa
propondo-se o seguinte dilema: ou ela levou uma vida imprópria e má, ou ela
levou uma vida apropriada e boa. Se foi uma vida má, deve ser culpada. Por
outro lado, se levou uma vida boa, isso é igualmente condenador; pois as bruxas
disfarçam e tentam parecer especialmente virtuosas.
11. Assim, a velha é encarcerada na prisão. Encontra-se uma nova prova
por meio de um segundo dilema: ela tem medo ou não. Se está com medo (ouvindo
falar das torturas horríveis empregadas contra as bruxas), isso é uma prova
segura; pois a sua consciência a acusa. Se não demonstra medo (confiando na sua
inocência), isso também é uma prova; pois as bruxas
caracteristicamente fingem inocência e são descaradas.
12. Para que essas não sejam as únicas provas, o investigador manda os
seus bisbilhoteiros, frequentemente depravados e infames, vasculharem toda a
vida passada da mulher. Isso decerto não será feito sem revelar alguma frase ou
ato, que os homens que tenham essa predisposição podem facilmente alterar e
distorcer, transformando-os em evidência de
bruxaria.
13. Qualquer pessoa que lhe queira mal tem então uma ampla oportunidade
de levantar contra ela todas as acusações que desejar; e todo mundo diz que a
evidência é forte contra ela.
14. E assim apressa-se o caminho à tortura, a menos que, como acontece
freqüentemente, ela seja torturada no mesmo dia da prisão.
15. Nesses julgamentos, ninguém tem permissão para ter advogado ou outro
meio de defesa justa, pois a bruxaria é considerada um crime excepcional [de
tal gravidade que todas as regras do procedimento legal podem ser suspensas], e
quem se aventurar a defender a prisioneira tornar-se ele próprio suspeito de
bruxaria, assim como todos os que ousarem protestar nesses casos e recomendar
que os juízes sejam prudentes, pois eles são imediatamente rotulados de
defensores da bruxaria. Assim, todo mundo se cala por medo.
16. Para que pareça ter uma oportunidade de se defender, a mulher é conduzida
perante um tribunal e as indicações de sua culpa são lidas e examinadas, se é
que se pode dar a isso o nome de exame.
17. Ainda que ela negue essas acusações e responda satisfatoriamente a
todas, não se lhe dá nenhuma atenção e suas respostas nem são registradas;
todos os indiciamentos retêm a sua força e validade, por mais perfeitas que
sejam suas respostas. Ela é mandada de volta à prisão, para considerar mais
cuidadosamente se vai persistir em sua obstinação, pois como já negou a sua
culpa, ela é obstinada.
18. No dia seguinte, ela comparece de novo perante o tribunal e ouve
uma ordem de tortura . como se ela nunca tivesse refutado as acusações.
19. Antes da tortura, porém, ela é revistada para verificar se não tem
amuletos: todo o seu corpo é raspado, e mesmo as partes privadas que indicam o
sexo feminino são lascivamente examinadas.
20. O que há de tão chocante nisso? Os padres são tratados da mesma maneira.
21. Quando a mulher foi raspada e revistada, ela é torturada para que confesse
a verdade, isto é, para declarar o que eles querem ouvir, pois naturalmente
nada mais pode ser verdade.
22. Eles começam com o primeiro grau, isto é, a tortura menos severa. Embora
excessivamente severa, ela é leve em comparação com as torturas posteriores. Portanto,
se ela confessa, eles dizem que a mulher confessou sem tortura!
23. Ora, que príncipe pode duvidar da culpa da mulher, quando lhe informam
que ela confessou voluntariamente, sem tortura?
24. Assim, ela é condenada à morte sem escrúpulos. Mas teria sido executada
mesmo que não tivesse confessado; pois, iniciada a tortura, os dados estão
lançados; ela não pode escapar, tem forçosamente de morrer.
25. O resultado é o mesmo, quer ela confesse, quer não. Se confessa, a
sua culpa é clara: ela é executada. Qualquer retratação é em vão. Se ela não confessa,
a tortura é repetida . duas, três, quatro vezes. Em crimes excepcionais, a
tortura é ilimitada em duração, severidade ou frequência.
26. Se, durante a tortura, a velha contorce as feições de dor, dizem que
ela está rindo; se desmaia, é que está dormindo ou enfeitiçou a si própria, tornando-se
taciturna. E, se é taciturna, merece ser queimada viva, como ultimamente tem
sido feito com algumas que, embora torturadas várias vezes, não se dispuseram a
dizer o que os investigadores queriam ouvir.
27. E até os confessores e os padres concordam que ela morreu
obstinada e impenitente; que ela não quis se converter, nem abandonar o seu
íncubo, mantendo-se fiel a ele.
28. Entretanto, se ela morre de tanta tortura, eles dizem que o diabo quebrou
o seu pescoço.
29. Por isso, o cadáver é enterrado embaixo da forca.
30. Por outro lado, se ela não morre sob tortura, e se um juiz
excepcionalmente escrupuloso hesita em torturá-la ainda mais sem novas provas,
ou em queimá-la sem a sua confissão, ela é mantida no cárcere e acorrentada mais
severamente, para apodrecer na prisão até se render, mesmo que isso leve todo
um ano.
31. Ela nunca consegue se ver livre das acusações. A comissão investigadora
se sentirá miserável, se absolvesse uma mulher; uma vez presa e acorrentada,
ela tem de ser culpada, por meios justos ou infames.
32. Enquanto isso, padres ignorantes e teimosos atormentam a infeliz criatura
para que ela se confesse culpada, quer isso seja verdade, quer não; se não confessar,
dizem eles, não poderá ser salva, nem receber os sacramentos.
33. Os padres mais compreensivos ou cultos não podem visitá-la na prisão,
para que não lhe dêem conselhos, nem informem os príncipes do que está se
passando. Nada é mais temido do que a possibilidade de ser apresentada alguma
evidência que prove a inocência da acusada. Quem tenta tal coisa é rotulado de
criador de encrenca.
34. Enquanto ela é mantida na prisão e torturada, os juízes inventam estratagemas
inteligentes para criar novas provas de culpa que a condenem sem sombra de
dúvida, para que, ao revisar o julgamento, um professor de universidade possa
confirmar o castigo de ser queimada viva.
35. Para dar a impressão de muito escrupulosos, alguns juízes mandam que
a mulher seja exorcizada, transferida para algum outro lugar e novamente
torturada, para quebrar o seu silêncio; se ela continua calada, eles podem
finalmente queimá-la. Ora, pelo amor de Deus, eu gostaria de saber, já que
aquela que confessa e a que não confessa morrem ambas da mesma forma, como pode
alguém escapar, por mais inocente que seja? Oh infeliz mulher, por que você
alimentou precipitadamente esperanças? Ao entrar pela primeira vez na prisão,
por que não admitiu tudo o que eles queriam? Oh mulher estúpida e louca, por
que você quis morrer tantas vezes, quando poderia ter morrido apenas uma vez?
Siga o meu conselho, e, antes de passar por todos esses horrores, confesse que
é culpada e morra. Você não escapará, pois isso seria uma desgraça catastrófica
para o zelo da Alemanha.
36. Depois que, sob o estresse da dor, a bruxa confessa, a sua
situação é indescritível. Não só ela não consegue escapar de si mesma, mas é
também compelida a acusar outras pessoas que não conhece, cujos nomes são freqüentemente
colocados na sua boca pelos investigadores ou sugeridos pelo carrasco, ou
pessoas de quem ouviu falar como suspeitas ou acusadas. Essas, por sua vez, são
forçadas a acusar outras, e essas outras ainda devem acusar mais outras, e
assim por diante: quem não vê que o processo deve continuar indefinidamente.
37. Os juízes devem suspender esses julgamentos (e assim negar a sua validade)
ou então queimar o seu próprio povo, a eles mesmos e a todos os demais; pois
mais cedo ou mais tarde todos serão acusados falsamente, e, se torturados,
ficará provado que todos são culpados.
38. Assim, finalmente, aqueles que primeiro levantaram bem alto a sua voz
para alimentar as chamas acabam eles próprios envolvidos, pois precipitadamente
deixaram de ver que a sua vez também chegaria. Assim, o céu pune justamente
aqueles que com suas línguas pestilentas criaram tantas bruxas e enviaram
tantos inocentes para a fogueira...
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