sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Família e sua ruína

Prece e Louvor - fotografia de Julia Margaret Cameron
A família é a base da sociedade. Esta máxima, tão disseminada de maneira ignóbil e pavorosa entre os indivíduos e/ou grupos mais ansiosos pela manutenção de certas imposições que lhes prouve patamares mais agudos. Mas ela é, de fato, algo mais profundo que isso. Uma família consistiria em ser uma “unidade básica da sociedade formada por indivíduos com ancestrais em comum ou ligados por laços afetivos”[1]. Estas ligações sempre foram importantes para a evolução constante da sociedade humana, e esta conceptualização se mostra cada vez mais intensa.
Como família, um grupo social possui sua unidade básica provinda da geração dos próximos seres. Assim, em geral, possuímos o pai, a mãe e os filhos. E entre vários animais, este conceito é estendido ao grupo, em si, sem uma unidade diminuta. Nos leões, por exemplo, as fêmeas formam-se como famílias para proteger os filhotes de esporádicos ataques e demais dos machos do bando, isso caracterizando uma família acentuadamente diferente da que conhecemos. Assim o cerne do uso da palavra ‘família’, neste texto, será o de unidade básica humana, acima apenas do indivíduo.
Mas também é inegável que o avanço da sociedade humana e suas compreensões cada vez mais massificadas de como somos, como devemos ser, quais nossos ideais e afins, nos moldaram de forma a visualizar e – mais até que isso – conceber famílias diferenciadas. No dia-a-dia, podemos ver famílias das mais variadas formas, que passam desde um indivíduo agindo familiarmente até a uma numerosa procedência. Isso pode nos levar a compreender que o modelo familiar vigente por vários séculos – e ainda hoje fortemente arraigado – possui em sua concepção a necessidade da própria subsistência humana, este sendo a fonte de proteção, alimentação, instrução e compreensão do ser que ali se transfigura bem como seus membros mais antigos o possui como obrigação sócio biológica de prover os citados, mas também ser, para si, o baluarte de seu posicionamento social.
Possivelmente fora da concepção bradada por pessoas que veem na formação destas diferenciadas famílias algo não natural, estas nos mostram a variabilidade do ser humano, e o quão adaptável ele é. Ter e fazer uma família diferente de determinados padrões em nada é regra de desalinhamento social, muito pelo contrário. A formação diferenciada pode se dar pela necessidade de adaptação. Criar filhos – quando a família os tem – sob a ótica de uma contemporânea sociedade é o principal medidor que possuímos para saber a quantas anda a interpretação desta mesma sociedade. A infância – para os celtas, por exemplo – era um período mágico. Existiam leis que regulamentavam os deveres dos pais biológicos e adotivos com respeito aos cuidados e à educação dos filhos pequenos. Uma das primeiras responsabilidades é escolher cuidadosamente o nome da criança, pois o significado do nome determina o papel que a pessoa desempenhará na vida adulta. Também era importante que a criança recebesse um nome antes que fosse afetada por forças adversas que pudessem influenciar seu destino. Contudo, muitas crianças especiais - aquelas que possuem uma sabedoria extraordinária e estão destinadas a transmiti-la aos outros - recebiam o nome de episódios aparentemente acidentais, mas também simbólicos, ocorridos em sua infância. Essas "crianças sábias" eram associadas com a água ao nascer ou logo depois do nascimento, e passavam por um "segundo nascimento", do qual emergiam precocemente instruídas e dotadas de ‘poderes sobrenaturais’[2].
Como é possível ver, boa parte das diferenciações familiares se dá como necessidade de adaptação, e não apenas do grupo, da sociedade, mas do próprio indivíduo. Esta mudança gerará ocorrências que criem tendências, mas que ainda assim dependerão de novas adaptações, e assim por diante.
A perceptível intransigência postulada e disseminada ano após ano, geração após geração, salpicam aqui e ali nestas famílias e em todos aqueles que abraçam isto que – infelizmente – acaba tendo que ser visto como uma ‘causa humanista’, e não uma ‘naturalidade humana’. Dissemina-se lógica refutabilíssima contra as diferentes maneiras de se formar uma família; impregna-se uma dialética que condiz com as piores normas de se conceber o ser humano, levando inevitavelmente a uma expansão epidêmica dessa visão deturpada, tanto para quem ataca quanto para quem se vê obrigado à defesa. Além da misoginia imposta neste comportamento, onde alegoricamente se apologiza a favor de seu meio de formação familiar, esta atitude não leva em consideração que existem necessidade intrínsecas às famílias, em função de uma gama de fatores que a fizeram evoluírem (ou pelo menos se diferenciar), agindo assim de maneira que a mãe (a mulher, ou aquele que se posicione neste papel) seja provedora da manutenção familiar, mas também única responsável pela manutenção desta. Isso acaba por implicar este personagem à dualidade de seu papel: “(me impõem) Amar os membros incondicionalmente (como se este fosse papel apenas meu), mas possuo a total responsabilidade de manter os filhos (ou membros) neste mesmo caminho específico. Desvirtuação mostra fraqueza minha...”
A religiosidade – principalmente as que detêm mais poder atualmente, como o cristianismo, hinduísmo, judaísmo e islamismo – com o monopólio da identificação “ideal” familiar (e este foi imputado pela persuasão física e mental durante milênio) tendeu a descontruir durante longo período a razão centralizadora e formadora do indivíduo no âmbito familiar diante a sociedade, tornando-se assim ela (religião) a primazia da formação do ser. À família, os espórios do que sobra do membro, como os seus erros[3].
Entretanto, esta difamação com relação às famílias e suas consequências destruidoras criam, por tanto, algo que poderíamos – até certo ponto – enxergar como paradoxal: uma luta acirrada para manter e propagar um status acaba por destruir os que se alinhem a ele. Famílias acabam por se desmembrarem por causas religiosas, e pelos mais variados motivos. Não é incomum ex-religiosos de seitas das mais variadas, como mórmons, Testemunhas de Jeová e algumas vertentes islâmicas e judias[4] se mostrarem e bradarem a dificuldades que possuem em se alinhar à família, pois a mesma demonstra antipatia a caminhos que vão de encontro à sua dogmática, e se relaciona diretamente – como dito anteriormente – com o monopólio forçado pelas igrejas de que seus caminhos são os “corretos”.
Não é pouco, nem incomum, que varias famílias cristãs se dissolvam por estas reflexões diretas de doutrinação. Não se propõe, aqui, discutir o quão podem ser nocivas concepções religiosas generalistas, e podem postular assimilações muito mais individuais do que eclesiásticas, mas mais ênfase àquelas direcionadas para o controle pelo controle, para o poder de membros de um grupo social clérigo em detrimento aos outros. Independentemente de qual se siga, o que se acredite ou o que seja o ideal, o miolo familiar acaba sendo degenerado para a elevação de apontamentos que são alheios à esta, as suas necessidade e a tudo aquilo que se veja na sua adaptação ao meio em que eles se inserem. E este distanciamento – entre os membros e suas reais necessidades, com o que lhes é imputado fazer – acarreta numa clara e incisa destruição familiar, gerando, além do próprio paradigma, um futuro indivíduo viciado nas disparidades lhe apresentada.



[3] A religião não é a única a se aproveitar disto e desta forma. O Estado, no papel de articulador de grupo-mor, utiliza-se da mesma técnica, mas o faz comutamente à primeira.

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