sexta-feira, 6 de junho de 2014

Educação sexual nas escolas públicas

Crianças brincando de roda - Der Kinderreigen
Desde que presenciamos um escândalo atrás do outro envolvendo cartilhas de educação sexual distribuídas nas escolas públicas que venho matutando na questão, que me afeta diretamente.

Para começo de conversa, não é de hoje que a educação sexual foi incluída na grade curricular das redes oficiais de ensino, o que não implica dizer que seja obrigatória na prática, nem que está sendo praticada, ou que os docentes tenham recebido qualquer tipo de preparação especial para administrar este tipo de ensinamento ou que a família tenha participação ou mesmo tenha direito a voto.

Faz tempo que nós, professores públicos, fomos impulsionados a trabalhar o sexo em sala de aula pelo Estado, pelo material didático disponibilizado, pela própria prática sexual precoce dos alunos, sem que um debate tenha sido feito na comunidade escolar, muito menos consultas à sociedade e, de lá pra cá (lá se vão uns 10 anos) temos tentado lidar com as várias situações do dia a dia escolar, desde a erotização precoce e a gravidez na adolescência, indo até os abusos sexuais que nossos alunos muitas vezes sofrem (e cometem, sim) e conflitos com famílias com seus próprios valores sociais e morais, que não nos cabe descartar, embora tentemos estimular a reflexão sobre e a prática cotidiana da ética entre família, alunos e escola.

Oficialmente, o que se vê de dentro das escolas é uma enxurrada de conteúdos sobre o tema desembocando nos livros de ciências destinados ao ensino fundamental (6 a 14 anos, mas muitos alunos estão além desta faixa etária), e só.
Às professoras e aos professores resta trabalhar o assunto da forma que considera apropriada dentro do currículo, e enfrentar a fúria dos pais e as dúvidas cabeludas dos pequenos, dando respostas de acordo com sua própria formação e ideias, sejam estas as defendidas pela moral vigente ou pela religião de cada um e mesmo pela sua vivência e pelos seus preconceitos.

(Pausa para fofoca profissional: Já vi professoras ensinando que homossexualidade é feia, errada, diabólica, doença ou anormalidade. Outra dizendo que sexo só depois de casar, inclusive na Igreja. Mais um apregoando que a menina não deve transar pois 'os meninos não têm dinheiro para lhes dar nada').

Assim é que o conteúdo programático traz detalhes sobre maturidade sexual, DSTs e sexo seguro e mais inúmeras ilustrações que atestam que os alunos estão prontos fisicamente para a prática sexual, enquanto que a moral escolar, de forma geral e supostamente consensual desestimula esta prática, ao mesmo tempo em que muitas dessas crianças são filhas de mães/pais adolescentes e já iniciaram sua vida sexual antes mesmo dos 14 anos.

Se, por um lado, há os pais que reconhecem em suas práticas sexuais pregressas algo de danoso para os filhos e desejam evitar que os mesmos repitam seus 'erros', há os que, por outro lado, nada veem de inapropriado no fato de sua filhinha de 13 anos ter um namoradinho de 17 e com ele dar suas voltinhas noturnas, até o momento em que a gravidez é anunciada e os pais passam a culpar os jovens que se precipitaram por 'safadeza' e muitos mesmos deixam que estes sofram as consequências sem qualquer amparo, ou acolhem a situação com a maior naturalidade do mundo, assumindo que se os filhos foram maduros para transar, serão também para constituir uma família.

Considero que a educação sexual não passa apenas pela informação aleatoriamente despejada sobre as crianças, sem se levar em conta as muitas vezes em que o conflito entre a naturalidade do assunto na vida escolar e a sua realidade moral em casa e na sociedade em que vive a expõe ao constrangimento, ao ridículo e à condenação familiar por estar estudando 'essas coisas feias', ou, o contrário, por ser esta informação 'coisa velha' que os alunos já sabem na prática.

Que a família é a primeira responsável pela educação sexual é claro para mim, haja vista que não há uma moral oficial designando quando, como e com quem o sexo consentido deva ser praticado nem, menos ainda, um consenso do que é e do que não é saudável, correto ou aceitável quando se fala de sexo consentido entre jovens pré-adolescentes ou já na puberdade.

Se a família tem em seus ditames morais a diretriz da liberalidade ou de conservadorismo, não será a pobre da professora que, sozinha, deverá condenar, suster ou coagir esta liberalidade ou conservadorismo, estando dentro da Constituição Federal e do E.C.A. (Estatuto da Criança e do Adolescente) claramente enunciado que  (citando):

A Constituição Federal de 1988, artigo 227:

[...] é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar o menor de idade, com absoluta prioridade, todos os direitos fundamentais para uma boa vivência, além de coloca-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão “, e no parágrafo quarto, cita que” à punição legal de qualquer espécie de abuso, violência e exploração sexual contra criança e o adolescente.

No E.C.A.:

Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.

O Estatuto da Criança e do Adolescente, como diploma legal especificamente destinado a defender os interesses destes, dispõe no artigo 5º que:

[...] nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais.

No E.C.A., também dispondo, em seus artigos 240 e 241, que é crime:

[...] o ato de produzir ou dirigir representação teatral, televisiva ou película cinematográfica, utilizando-se de criança ou adolescente em cena de sexo explícito ou pornográfica, assim como de fotografar ou publicar cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança e adolescente.

O Código Penal possui nos artigos 217, 218 e 224 dispositivos que tratam dos delitos de natureza sexual, os crimes de estupro e atentado violento ao pudor, quando praticados contra menores de quatorze anos de idade, gozam da presunção de violência. De outro lado, este abuso de caráter intrafamiliar constitui causa de aumento de pena.
Quanto à prostituição infantil, não há dispositivo penal. Por outro lado, o favorecimento à prostituição, qualquer que seja a idade da vítima, ou a manutenção de casas de prostituição, são condutas coibidas como práticas criminosas. O tráfico de mulheres também é vedado, porém, não há dispositivo penal que trate especificamente do tráfico de crianças para fins de prostituição infantil.[1]

Ocorre que nada é dito sobre meninas e meninos entre 12 e 14 anos, (trabalhadores autônomos, alguns mesmo arrimo de família e a maioria precocemente amadurecida pela vida difícil) envolvidos em práticas sexuais voluntariamente entre si ou com pessoas de seu convívio com mais idade e até de 18 ou 20 anos ou mais.

São inúmeros os casos em que uma garota de 13 namora um rapaz de 18 que os pais consideram trabalhador, digno e decente o suficiente para sua filhinha, e ficam até felizes quando há a gravidez nestes casos, pois a mocinha está 'encaminhada e não corre o risco de ficar à toa, na mão de um ou de outro que não lhes oferecerá futuro'.
Há os casos inversos, pais ausentes, irresponsáveis, jovens demais ou simplesmente criados em ambientes onde o sexo precoce a partir dos 12/13 anos não é visto como uma aberração, mas sim como uma decisão impulsiva e inconsequente desses jovens, que deverão arcar com as possíveis consequências negativas, sob avisos ou ameaças de que devem 'saber o que estão fazendo pois eu digo a ele (a) todo dia que não vou criar neto e a AIDS está aí'.

É claro que existem os pais de comportamento mais condizente com a moral do sexo apenas após a maioridade legal.

E daí? Que poder possuo para estancar o jorro de hormônios da puberdade? O que devo ensinar sobre educação sexual a um jovem ou uma jovem de 14 anos que transa desde os 12 com seu namoradinho 1 ano mais velho? Que devem parar com isso? Que usem camisinha? Que devem ir ao médico e tomar anticoncepcionais? Que devem contar aos pais? Isto eles já sabem. E se dou alguma informação extra, sofro acusações de estar estimulando a prática sexual dos pequenos.
Até tento orientar os pais sobre os riscos e as consequências legais, e forneço endereços onde se pode ter assistência médica e psicológica específicas mas... Não é este o meu papel de professora, principalmente se a família tem conhecimento do fato, foi por mim e pela escola assistida e informada, consente e me impede (até de forma ameaçadora e violenta) de interferir.

Tudo o que posso fazer em sala de aula, além das aulas de ciências é esclarecer suas dúvidas, apoiá-los em momentos críticos, estar atenta para possíveis abusos ou violências e denunciá-los.
Não é minha função e nem foi para conter a libido juvenil que estudei nem é esta minha vocação. Principalmente quando o quadro é quase geral, num universo carente dos serviços mais básicos e com uma dinâmica moral própria, ligada à valorização da emancipação e do amadurecimento precoce do adolescente, para que trabalhe e ajude a família a sobreviver
Assumo, como parte da minha obrigação educacional, comunicar aos pais qualquer comportamento sexual precoce dos alunos, dar conselhos imparciais moralmente mas solidários, éticos e amorosos, quando solicitados ou quando situações críticas se impõem e exigem alguma orientação mais subjetiva, porém, há pouco ou nada no âmbito legal que eu possa fazer, exceto de nunca ir os pais, em caso de continuidade, e promover uma reação em cadeia que atingirá quase toda uma comunidade, já que a sexualidade precoce é regra e não exceção em tais comunidades.

Bem, não sou a favor do sexo livre entre crianças de 12 anos em diante, digo que ele existe em determinados setores sociais, é aceito e visto como apenas imprudência ou 'muito fogo embaixo da saia'. Afirmo que não é ensinando onde fica o clitóris e a glande ou como se faz um bebê que estaremos dando educação sexual aos nossos alunos. Que não me cabe impedir os jovens de transarem ou os pais de serem permissivos ou reeducar estes pais contra tudo o que vivenciaram desde a sua infância. Que a escola não pode ser a responsável única pelo comportamento sexual de toda uma geração filha de pais adolescentes, desprivilegiados socialmente e com pouco ou nada para fazer além de transar, beber e dançar para se divertir.

A educação sexual na escola pública, em minha opinião profissional, deveria ser centrada não numa moral ideal pouco ou muito praticada pelas famílias mas divergente mesmo entre os educadores (teimo em não aceitar mais esta tarefa impossível), mas no real amparo às problemáticas cotidianas a que as famílias e os alunos estão expostos, numa tentativa de ampliar sim, os conhecimentos biológicos e jurídicos referentes ao sexo precoce, mas sem condenações ou julgamentos subjetivos, sejam de origem religiosa ou provenientes da experiência pessoal destes educadores ou por orientação de uma diretora escolar que acha que toda menina pobre deveria ser esterilizadas.

Defendo que a educação sexual disponibilizada pelo Estado não deve, em hipótese alguma, substituir os valores familiares, pois estaria configurada uma ditadura moral.
Que esta mesma educação sexual oferecida pelo Estado não deveria ser limitada às escolas ou aos alunos, mas abranger a família, seja na forma de campanhas informativas nos postos de saúde, nas escolas noturnas e nas associações de bairro, seja através da mídia ou de ações educativas que visem armar as famílias para proteger a população jovem dos riscos físicos e psicológicos da erotização precoce e suas consequências.
Que uma reestruturação no conceito de educação sexual é necessário e urgente, caso a obrigatoriedade venha a ser imposta na prática pelo poder público e que aquela deveria estar coadunada com as necessidades de amparo às famílias e aos adolescentes.
Que o corpo docente seja ampliado com profissionais das áreas da saúde para administrar esta disciplina, caso seja ministrada na escola. Que os professores do ensino fundamental não sejam responsabilizados pela remodelação do pensamento sexual dos nossos jovens, que transam livremente, engravidam precocemente e morrem por abortos malfeitos em clínicas clandestinas ou com medicamentos perigosos, ou, pior e o que já acontece nas regiões onde trabalhei e trabalho: que nossos jovens não se tornem mães e pais antes de saberem o que significa isto, perpetuando um quadro de crianças criando crianças.
Que a sociedade assuma suas responsabilidades ou cale-se para sempre e arque com as consequências.

Jacqueline K

2 comentários:

  1. Gostei muito do texto, mostra claramente a visão de uma educadora. O que me assusta, é o fato de tudo está tão longe de ser corrigido ou melhorado.
    Ando muito pessimista com o futuro deste país, mas ter ideias radicais como da diretora que acha que todas as meninas pobres devem ser esterilizadas, não ajuda em nada.

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  2. Muito obrigada pela leitura e pelo comentário, Renato, desculpe-nos a demora em responder. Sim, é fato que as mudanças necessárias não se fazem notar e que realmente não há muito sendo feito nesse sentido. Cabe a nós, como cidadãos, nos posicionarmos junto aos poderes públicos e exigir políticas adequadas, além de, em nossas próprias experiências cotidianas, nos posicionarmos sempre que nos deparemos com situações de preconceito, discriminação ou mesmo indução desse comportamento não só no ambiente escolar mas em qualquer outro. Abraços!

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