domingo, 14 de dezembro de 2014

Cultura do estupro e machismo em nós

The Nightmare - Johann Heinrich Füssli 
Em todo estudo que seja feito com relação às ações humanas, seus meios sociais e todas as consequências em nosso futuro o relativismo cultural é de extrema importância para elucidar várias das mensurações que advém dos resultados. A potencialidade de uma sociedade, as incursões do indivíduo e no que isto é representativo nos variados grupos que abrangem um ou vários grupos sociais estudos, sua participação espacial e temporal na história humana[1]. Mas existe um sério problema no relativismo que até hoje é discutido e muito combatido em determinados aspectos quando envolve a integralidade do indivíduo, integralidade física, moral e intelectual. E estamos encontrando muito isto no debate com relação a estupro, uma nefasta mas recorrente ação no mundo todo e que foi, com várias declarações de várias pessoas nos últimos dias, transmodificada em algo que foge e muito à verdade desta problemática.
Decorre, primeiramente, que partirei do princípio que todos que este texto lerem sabem que falo sobre as declarações do deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ) para a Deputada Maria do Rosário (PT-RJ), onde ele diz que ele “não a estuprava por que ela não merecia”. Esta declaração é de uma contextualização muito mais forte do que aparenta, pois se alguém diz uma específica pessoa não merece ser estuprada ela diretamente alega que outras merecem, e isto sem contar o tom jocoso, pois Bolsonaro associa o estupro com o ato sexual consentido, como se ele é quem decidisse não estuprá-la por achá-la desagradável aos seus olhos e que esta deveria se sentir mal por não ser “eleita” para tal ato. É preciso refletir muito fortemente o papel desta monstruosidade em todas as sociedades humanas ao longo da história. E faremos isto não pelo olhar masculino apenas, mas sobre o que esta ótica pode enxergar pelos olhos femininos.
E por que faremos especificamente esta ótica? Por que o mundo é machista. Sim, para muitos pode parecer exagero e uma maneira de encontrar culpados de atrocidades desde que éramos nômades e dormíamos em cavernas e em árvores e de esta culpa recair especificamente num único gênero. Mas negar um mundo machista é fechar a própria concepção de mundo e fugir das próprias responsabilidades para com este. E sabemos que fugir de responsabilidades é uma habilidade aptamente humana. Cada milímetro quadrado tanto fisicamente quanto intelectualmente, socialmente e emocionalmente passa pelo crivo masculino. Desde nossas vestimentas até nossa tecnologia, nossas formas de governo, de distribuição de renda, de escolarização, de dogmatização religiosa, de construção histórica enfim foi moldada se não apenas por homens mas pela esmagadora maioria deles, e muitíssimas vezes quando não, era com sua permissão. Somos, portanto, uma sociedade global macho-normativa, onde tudo que é feito, pensado, trabalhado é em prol dos gostos e da visão masculina de se conceber o mundo.
Sendo assim, vislumbrar a visão feminina nos traz à tona tudo aquilo que um homem jamais saberá o que se é, apenas intelectualmente e dentro dum panorama reflexivo mas jamais emocional, por mais que tentemos e achemos estarmos chegando perto. Assim, esta visão deve ser não neutra e não objetiva, uma vez que para sê-la assim partir-se-ia da premissa de que os homens e as mulheres são estritamente iguais, e sabemos que isto também não é verdade. Nossa análise tem que ser subjetiva e internalizadora, empática ao maior grau possível.
Mesmo com várias exceções bem conhecidas, a mulher é fisicamente mais frágil que o homem. E isto o é há milênios. O macho usa esta vantagem para a intimidação e sobreposição, uma forma de passar seus genes à diante. A fêmea, subjugada e agredida, acaba por ser mantida na opressão e violentada. Esta lógica não é exclusividade humana, mas persiste em nós das formas mais variadas, mas nem perto de serem menos intimidantes e violentas. E as várias variantes que promovem isto são leis que segregam mulheres, que são suas condições menos interpretativas a elas, e a visão masculina permanece. Em países teocráticos islâmicos vemos muitas destas ocorrências[2]. Um exemplo claríssimo disto é com relação ao aborto, onde a mulher precisa ter seu corpo e sua estrutura emocional violentadas em clínicas clandestinas simplesmente por não poderem escolher o que deve ocorrer em seu útero.[3] Leis assim são não apenas uma opressão e agressão ao espírito feminino, mas coação a esta ser o que agrade às visões masculinas de mundo. Mas por que intimidar uma mulher? Porquê fazê-la crer que é frágil e impotente? Por que o macho pode. A resposta está na própria pergunta. Animais que agem na forma de satisfação própria e esta satisfação animalesca infelizmente não se perdeu com a evolução intelectual e social humana. Não que todo homem quererá se impor a uma mulher (ou mesmo outros homens que ele julgue ser “inferior”), mas esta sombra infelizmente paira e pairará por muito tempo ainda nos pensamentos, sentimentos e ações femininas. Uma mulher que sai na noite para se divertir precisará estar acompanhada e bem acompanhada, pois caso contrário será um alvo promissor para qualquer um que queira estuprá-la, violentá-la. Isto pode não ocorre, e até mesmo o local onde ela se encontra pode não dar muitos indícios de que isto seja comum, mas ainda assim sua mente flutuará nestas nuvens negras do medo e da vida se esvaindo a qualquer barulho que a assuste. Você poderia se perguntar “mas o que uma mulher faz a noite, num lugar deserto, escuro e sozinha?” Eu lhe devolvo a pergunta: “O que um homem faz num lugar deserto, escuro e sozinho?”. Ao que parece, se se espanta muito mais a mulher nesta situação do que o homem. E isto ocorre exatamente por termos uma cultura de estupro e violência muito evidente no ser humano, onde a mulher é a principal vítima. E o homem mantenedor. E os homens são mantenedores por centenas de motivos, e um deles é exatamente a pergunta feita anteriormente. Chega-se ao ponto de se questionar uma mulher que estava sozinha num lugar escuro e deserto, mas não de se questionar por que seu algoz a estuprou.
Condicionamos as mulheres com nossas escolhas com suas roupas, seus modos, suas atitudes e até mesmo seus pensamentos e desejos. Achamos que o correto é prevenir um estupro e uma violência, e não mudar uma cultura onde se é comum que sordidezes assim ocorram. Assustamos-nos por que nossas esposas, irmãs, mães e filhas estão expostas a isto, mas abdicamos da mesma preocupação – ou pelo menos do mesmo grau desta – quando são mulheres que nos são estranhas, e que agem em desconforme ao que nós, como homens provedores da razão e da força, passamos a elas. Se uma mulher estranha é estuprada e violentada nós a responsabilizamos, e os homens de seu convívio e que se sentem no dever da “proteção” dela se sentem humilhados por sua masculinidade ter sido agredida. Isto não é, de forma alguma, empatia. A mulher é quem foi agredida, desde que foi ensinada a se portar de determinada maneira até o ato ocorrido. E se o ato não ocorreu, a agressão ainda está lá.
O número absurdo de mulheres violentadas e estupradas ocorre exatamente por estes fatores acima citados, onde até mesmo os homicídios são em menor quantidade que os estupros.[4] E isto é histórico, isto é cultural. O subjugo perpetrado às mulheres ocorreu na nossa história com escravas, e estas eram vistas como entretenimento para os seus ‘senhores’, dentre outras coisas mais. O desbravamento mata adentro em nossas terras não ocorreu sem a violência e o estupro das índias que os portugueses e seus asseclas exploradores imputaram para se sobrepor às tribos da região roubada.[5] E esta pratica não era vista como hedionda, mas tão normal quanto fundamental para que os exploradores europeus perfizessem seu domínio, sua conquista.
E como acabar com a cultura do estupro? Como encontrar os responsáveis pela manutenção da mesma? Como mudar esta triste realidade? Olhando-se no espelho. Como dito acima, cada ato, cada pensamento, cada sentimento, cada milímetro quadrado de tudo que nos cerca é machista, é voltado para o macho como dominante e opressor. Toda piada, todo senso-comum, toda constatação de culpabilidade de violência contra o oprimido no próprio oprimido deve ser banida. Primeiramente de o nosso próprio pensar e sentir. Isto demanda autorreflexão e informação (e hoje sabemos como isto é fácil em via da acessibilidade às informações). Piadas, humor e brincadeiras que remetam às mulheres um papel específico social onde elas são menos, elas são submissas ou mesmo são incontrolavelmente subpostas às suas emoções (como se os homens não pudessem se submeter às mesmas, mas mesmo esta análise – para todos os gêneros – é rasa e desprovida de dados correlatos) podem não parecer mas apenas reforçam estereótipos opressivos prolongam o martírio feminino. Manter aspectos que futilizem a vida, os pensamentos e as vontades e desejos femininos também é uma agressão, e uma agressão velada. Dizer que “mulher é assim mesmo” ou “isto é coisa de mulher”, relacionando estas falas sejam às ações, sentimentos, comportamentos, vestimentas, comercialização de produtos e mídia, divulgação de ideias preconcebidas nestes aspectos reforçam mais mundanamente e – infelizmente – mais eficazmente mais este estereótipo de o que uma mulher deve ser para se encaixar aos padrões masculinos. As escolhas do que vestir, usar, enfeitar-se, pensar, comer, amar, gozar, poetizar, escrever e tantos outros verbos não passa pelo determinismo de gênero, mas por concepções pessoais e experiências de vida. Alguém pode se vestir como a sociedade lhe esculpiu a fazê-lo, mas caberá a ela e a mais ninguém decidir se o mantém ou não, e isto também não diz a respeito de sua essência, de quem ela é. Uma mulher terá seu sucesso pessoal (e uso a palavra sucesso de forma restrita, enquanto autopercepção do que é estar em sucesso) nas formas em que lhe impusermos, sendo mãe e coautora de um homem, e não por ser que ela decidiu ser. Este senso é temerário e agressivo, criando um mérito onde o ganho provém de se manter no esquema social masculino, e não na própria satisfação pessoal.[6] Estas ações podem ao menos abrandar a misoginia que fere fatalmente a sociedade e sua raiz feminina. As mulheres sofrem com ela, e a culpa é nossa.
Imagine vivendo com medo, em cada esquina, em cada canto, a cada barulho, vendo um mundo de monstros que a qualquer momento possam espreitar você, violentar você, estuprar você, matar você. Estes monstros mandam em você, te dizem o que querem de você e ai de você se não fizer. Saia um pouco da linha e “na melhor das hipóteses” estes monstros te excluem da vivência com eles e te humilham intermitentemente, inclusive monstros dos quais você ama, e na “pior das hipóteses”, eles te ceifam a vida. Alguns como você deveriam estar do seu lado, mas preferem, por medo e condicionamento pelo medo e coação, preferem fazer o mesmo que estes monstros contigo. Pronto, agora você conhece o que é ser mulher na nossa sociedade milenarmente doente.[7]
Com esta proposição toda, volto ao ponto da fala de Bolsonaro. Em primeira instância, quando você defende um crime ou dá a entender que é praticante deste decorre-se de outro crime, o de apologia, previsto no Código Penal brasileiro em seu Art. 287[8]. Muitos quiseram salientar equivocadamente que existem alguns pontos distintos. Destacarei dois. O primeiro é de que ele foi provocado pela deputada Maria do Rosário e suas palavras seriam uma espécie de “ofensiva exagerada” e que ela, portanto, teria recorrido em indecoro. O debate não passa por isto. O caso falava de outra situação e o vídeo tão divulgado na internet indiferentemente não nos mostra o início da discussão. Mas agora o ponto não apenas importante, mas o real ponto aqui: não se defende de ofensas através do crime de apologia, e o uso de coação machista por parte do congressista para com uma mulher mostra tudo o que dissemos que há na sociedade (muito falado nos parágrafos anteriores). Então ele está errado. Ele comete um crime, ele ofende uma pessoa, ele destrói o decoro parlamentar e agride de forma opressora alguém que ele julga ser menos que ele, pois ele ‘é homem’ e ela é “apenas uma mulher’.
O outro ponto, e me arrisco a dizer aqui que o achei bastante non-sense, é o desvio do fato em questão. E é aqui que vemos o relativismo já dito se fazer usado arbitrariamente e erroneamente. Há a nítida insatisfação por parte de várias pessoas com situações que envolvem o governo federal nas mais variadas esferas atuais. Mas quando lidamos com direitos humanos e falamos da opressão que as mulheres sofrem não importa de que lado politiqueiro você esteja, sua ideologia política nem sua constatação de o que é melhor para o país como um todo, mas dos direitos humanos e das mulheres sendo impiedosamente dilacerado. Algumas pessoas defendem Bolsonaro não por ele estar representando uma visão conservadora que acham a solução dos nossos problemas, mas por ele ser politicamente oposição ao atual governo. Então acaba que estas pessoas o seguirão em suas barbáries não importando quão maculosas elas serão.[9] Mas muitas, e novamente me arrisco a afirmar que sejam a grande maioria, pensam exatamente como o deputado, e acabam por serem os homens citados neste texto, machistas, misóginos, preconceituosos e perpetradores da cultura do estupro.
As mulheres, assim como toda a sociedade em que elas estão inseridas, não deveriam ser obrigadas a viver sob este comportamento horrível e desvirtuado. Elas não deveriam ser obrigadas a viver suas vidas com o medo como companheiro constante. Nenhuma mulher deveria ser estuprada, e nem deveria ter qualquer tipo de violência que nós homens façamos contra elas. Não é a sociedade que decide um “merecimento” de alguém, como dizer que as mulheres merecem isto ou aquilo, pois temos o dever para com o ser humano e, neste caso dito no texto, para com as mulheres.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Comente!