The Nightmare - Johann Heinrich Füssli |
Em todo
estudo que seja feito com relação às ações humanas, seus meios sociais e todas
as consequências em nosso futuro o relativismo cultural é de extrema
importância para elucidar várias das mensurações que advém dos resultados. A
potencialidade de uma sociedade, as incursões do indivíduo e no que isto é
representativo nos variados grupos que abrangem um ou vários grupos sociais
estudos, sua participação espacial e temporal na história humana[1].
Mas existe um sério problema no relativismo que até hoje é discutido e muito
combatido em determinados aspectos quando envolve a integralidade do indivíduo,
integralidade física, moral e intelectual. E estamos encontrando muito isto no
debate com relação a estupro, uma nefasta mas recorrente ação no mundo todo e
que foi, com várias declarações de várias pessoas nos últimos dias,
transmodificada em algo que foge e muito à verdade desta problemática.
Decorre,
primeiramente, que partirei do princípio que todos que este texto lerem sabem
que falo sobre as declarações do deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ) para a
Deputada Maria do Rosário (PT-RJ), onde ele diz que ele “não a estuprava por
que ela não merecia”. Esta declaração é de uma contextualização muito mais
forte do que aparenta, pois se alguém diz uma específica pessoa não merece ser
estuprada ela diretamente alega que outras merecem, e isto sem contar o tom
jocoso, pois Bolsonaro associa o estupro com o ato sexual consentido, como se
ele é quem decidisse não estuprá-la por achá-la desagradável aos seus olhos e
que esta deveria se sentir mal por não ser “eleita” para tal ato. É preciso
refletir muito fortemente o papel desta monstruosidade em todas as sociedades
humanas ao longo da história. E faremos isto não pelo olhar masculino apenas,
mas sobre o que esta ótica pode enxergar pelos olhos femininos.
E por que
faremos especificamente esta ótica? Por que o mundo é machista. Sim, para
muitos pode parecer exagero e uma maneira de encontrar culpados de atrocidades
desde que éramos nômades e dormíamos em cavernas e em árvores e de esta culpa
recair especificamente num único gênero. Mas negar um mundo machista é fechar a
própria concepção de mundo e fugir das próprias responsabilidades para com
este. E sabemos que fugir de responsabilidades é uma habilidade aptamente
humana. Cada milímetro quadrado tanto fisicamente quanto intelectualmente,
socialmente e emocionalmente passa pelo crivo masculino. Desde nossas
vestimentas até nossa tecnologia, nossas formas de governo, de distribuição de
renda, de escolarização, de dogmatização religiosa, de construção histórica
enfim foi moldada se não apenas por homens mas pela esmagadora maioria deles, e
muitíssimas vezes quando não, era com sua permissão. Somos, portanto, uma
sociedade global macho-normativa, onde tudo que é feito, pensado, trabalhado é
em prol dos gostos e da visão masculina de se conceber o mundo.
Sendo
assim, vislumbrar a visão feminina nos traz à tona tudo aquilo que um homem
jamais saberá o que se é, apenas intelectualmente e dentro dum panorama
reflexivo mas jamais emocional, por mais que tentemos e achemos estarmos
chegando perto. Assim, esta visão deve ser não neutra e não objetiva, uma vez
que para sê-la assim partir-se-ia da premissa de que os homens e as mulheres
são estritamente iguais, e sabemos que isto também não é verdade. Nossa análise
tem que ser subjetiva e internalizadora, empática ao maior grau possível.
Mesmo com
várias exceções bem conhecidas, a mulher é fisicamente mais frágil que o homem.
E isto o é há milênios. O macho usa esta vantagem para a intimidação e
sobreposição, uma forma de passar seus genes à diante. A fêmea, subjugada e
agredida, acaba por ser mantida na opressão e violentada. Esta lógica não é
exclusividade humana, mas persiste em nós das formas mais variadas, mas nem
perto de serem menos intimidantes e violentas. E as várias variantes que
promovem isto são leis que segregam mulheres, que são suas condições menos
interpretativas a elas, e a visão masculina permanece. Em países teocráticos
islâmicos vemos muitas destas ocorrências[2].
Um exemplo claríssimo disto é com relação ao aborto, onde a mulher precisa ter
seu corpo e sua estrutura emocional violentadas em clínicas clandestinas
simplesmente por não poderem escolher o que deve ocorrer em seu útero.[3]
Leis assim são não apenas uma opressão e agressão ao espírito feminino, mas
coação a esta ser o que agrade às visões masculinas de mundo. Mas por que
intimidar uma mulher? Porquê fazê-la crer que é frágil e impotente? Por que o
macho pode. A resposta está na própria pergunta. Animais que agem na forma de
satisfação própria e esta satisfação animalesca infelizmente não se perdeu com
a evolução intelectual e social humana. Não que todo homem quererá se impor a uma
mulher (ou mesmo outros homens que ele julgue ser “inferior”), mas esta sombra
infelizmente paira e pairará por muito tempo ainda nos pensamentos, sentimentos
e ações femininas. Uma mulher que sai na noite para se divertir precisará estar
acompanhada e bem acompanhada, pois caso contrário será um alvo promissor para
qualquer um que queira estuprá-la, violentá-la. Isto pode não ocorre, e até
mesmo o local onde ela se encontra pode não dar muitos indícios de que isto
seja comum, mas ainda assim sua mente flutuará nestas nuvens negras do medo e
da vida se esvaindo a qualquer barulho que a assuste. Você poderia se perguntar
“mas o que uma mulher faz a noite, num lugar deserto, escuro e sozinha?” Eu lhe
devolvo a pergunta: “O que um homem faz num lugar deserto, escuro e sozinho?”.
Ao que parece, se se espanta muito mais a mulher nesta situação do que o homem.
E isto ocorre exatamente por termos uma cultura de estupro e violência muito
evidente no ser humano, onde a mulher é a principal vítima. E o homem mantenedor.
E os homens são mantenedores por centenas de motivos, e um deles é exatamente a
pergunta feita anteriormente. Chega-se ao ponto de se questionar uma mulher que
estava sozinha num lugar escuro e deserto, mas não de se questionar por que seu
algoz a estuprou.
Condicionamos
as mulheres com nossas escolhas com suas roupas, seus modos, suas atitudes e
até mesmo seus pensamentos e desejos. Achamos que o correto é prevenir um
estupro e uma violência, e não mudar uma cultura onde se é comum que sordidezes
assim ocorram. Assustamos-nos por que nossas esposas, irmãs, mães e filhas
estão expostas a isto, mas abdicamos da mesma preocupação – ou pelo menos do
mesmo grau desta – quando são mulheres que nos são estranhas, e que agem em
desconforme ao que nós, como homens provedores da razão e da força, passamos a
elas. Se uma mulher estranha é estuprada e violentada nós a responsabilizamos,
e os homens de seu convívio e que se sentem no dever da “proteção” dela se
sentem humilhados por sua masculinidade ter sido agredida. Isto não é, de forma
alguma, empatia. A mulher é quem foi agredida, desde que foi ensinada a se
portar de determinada maneira até o ato ocorrido. E se o ato não ocorreu, a
agressão ainda está lá.
O número
absurdo de mulheres violentadas e estupradas ocorre exatamente por estes
fatores acima citados, onde até mesmo os homicídios são em menor quantidade que
os estupros.[4]
E isto é histórico, isto é cultural. O subjugo perpetrado às mulheres ocorreu
na nossa história com escravas, e estas eram vistas como entretenimento para os
seus ‘senhores’, dentre outras coisas mais. O desbravamento mata adentro em
nossas terras não ocorreu sem a violência e o estupro das índias que os
portugueses e seus asseclas exploradores imputaram para se sobrepor às tribos
da região roubada.[5]
E esta pratica não era vista como hedionda, mas tão normal quanto fundamental
para que os exploradores europeus perfizessem seu domínio, sua conquista.
E como
acabar com a cultura do estupro? Como encontrar os responsáveis pela manutenção
da mesma? Como mudar esta triste realidade? Olhando-se no espelho. Como dito
acima, cada ato, cada pensamento, cada sentimento, cada milímetro quadrado de
tudo que nos cerca é machista, é voltado para o macho como dominante e
opressor. Toda piada, todo senso-comum, toda constatação de culpabilidade de
violência contra o oprimido no próprio oprimido deve ser banida. Primeiramente
de o nosso próprio pensar e sentir. Isto demanda autorreflexão e informação (e
hoje sabemos como isto é fácil em via da acessibilidade às informações).
Piadas, humor e brincadeiras que remetam às mulheres um papel específico social
onde elas são menos, elas são submissas ou mesmo são incontrolavelmente
subpostas às suas emoções (como se os homens não pudessem se submeter às
mesmas, mas mesmo esta análise – para todos os gêneros – é rasa e desprovida de
dados correlatos) podem não parecer mas apenas reforçam estereótipos opressivos
prolongam o martírio feminino. Manter aspectos que futilizem a vida, os
pensamentos e as vontades e desejos femininos também é uma agressão, e uma
agressão velada. Dizer que “mulher é assim mesmo” ou “isto é coisa de mulher”,
relacionando estas falas sejam às ações, sentimentos, comportamentos,
vestimentas, comercialização de produtos e mídia, divulgação de ideias
preconcebidas nestes aspectos reforçam mais mundanamente e – infelizmente –
mais eficazmente mais este estereótipo de o que uma mulher deve ser para se
encaixar aos padrões masculinos. As escolhas do que vestir, usar, enfeitar-se,
pensar, comer, amar, gozar, poetizar, escrever e tantos outros verbos não passa
pelo determinismo de gênero, mas por concepções pessoais e experiências de
vida. Alguém pode se vestir como a sociedade lhe esculpiu a fazê-lo, mas caberá
a ela e a mais ninguém decidir se o mantém ou não, e isto também não diz a
respeito de sua essência, de quem ela é. Uma mulher terá seu sucesso pessoal (e
uso a palavra sucesso de forma restrita, enquanto autopercepção do que é estar
em sucesso) nas formas em que lhe impusermos, sendo mãe e coautora de um homem,
e não por ser que ela decidiu ser. Este senso é temerário e agressivo, criando
um mérito onde o ganho provém de se manter no esquema social masculino, e não
na própria satisfação pessoal.[6] Estas
ações podem ao menos abrandar a misoginia que fere fatalmente a sociedade e sua
raiz feminina. As mulheres sofrem com ela, e a culpa é nossa.
Imagine
vivendo com medo, em cada esquina, em cada canto, a cada barulho, vendo um mundo
de monstros que a qualquer momento possam espreitar você, violentar você,
estuprar você, matar você. Estes monstros mandam em você, te dizem o que querem
de você e ai de você se não fizer. Saia um pouco da linha e “na melhor das
hipóteses” estes monstros te excluem da vivência com eles e te humilham
intermitentemente, inclusive monstros dos quais você ama, e na “pior das
hipóteses”, eles te ceifam a vida. Alguns como você deveriam estar do seu lado,
mas preferem, por medo e condicionamento pelo medo e coação, preferem fazer o
mesmo que estes monstros contigo. Pronto, agora você conhece o que é ser mulher
na nossa sociedade milenarmente doente.[7]
Com esta
proposição toda, volto ao ponto da fala de Bolsonaro. Em primeira instância,
quando você defende um crime ou dá a entender que é praticante deste decorre-se
de outro crime, o de apologia, previsto no Código Penal brasileiro em seu Art.
287[8].
Muitos quiseram salientar equivocadamente que existem alguns pontos distintos.
Destacarei dois. O primeiro é de que ele foi provocado pela deputada Maria do
Rosário e suas palavras seriam uma espécie de “ofensiva exagerada” e que ela,
portanto, teria recorrido em indecoro. O debate não passa por isto. O caso
falava de outra situação e o vídeo tão divulgado na internet indiferentemente
não nos mostra o início da discussão. Mas agora o ponto não apenas importante,
mas o real ponto aqui: não se defende de ofensas através do crime de apologia,
e o uso de coação machista por parte do congressista para com uma mulher mostra
tudo o que dissemos que há na sociedade (muito falado nos parágrafos
anteriores). Então ele está errado. Ele comete um crime, ele ofende uma pessoa,
ele destrói o decoro parlamentar e agride de forma opressora alguém que ele
julga ser menos que ele, pois ele ‘é homem’ e ela é “apenas uma mulher’.
O outro
ponto, e me arrisco a dizer aqui que o achei bastante non-sense, é o desvio do fato em questão. E é aqui que vemos o
relativismo já dito se fazer usado arbitrariamente e erroneamente. Há a nítida
insatisfação por parte de várias pessoas com situações que envolvem o governo
federal nas mais variadas esferas atuais. Mas quando lidamos com direitos
humanos e falamos da opressão que as mulheres sofrem não importa de que lado
politiqueiro você esteja, sua ideologia política nem sua constatação de o que é
melhor para o país como um todo, mas dos direitos humanos e das mulheres sendo
impiedosamente dilacerado. Algumas pessoas defendem Bolsonaro não por ele estar
representando uma visão conservadora que acham a solução dos nossos problemas,
mas por ele ser politicamente oposição ao atual governo. Então acaba que estas
pessoas o seguirão em suas barbáries não importando quão maculosas elas serão.[9]
Mas muitas, e novamente me arrisco a afirmar que sejam a grande maioria, pensam
exatamente como o deputado, e acabam por serem os homens citados neste texto,
machistas, misóginos, preconceituosos e perpetradores da cultura do estupro.
As
mulheres, assim como toda a sociedade em que elas estão inseridas, não deveriam
ser obrigadas a viver sob este comportamento horrível e desvirtuado. Elas não deveriam
ser obrigadas a viver suas vidas com o medo como companheiro constante. Nenhuma
mulher deveria ser estuprada, e nem deveria ter qualquer tipo de violência que
nós homens façamos contra elas. Não é a sociedade que decide um “merecimento”
de alguém, como dizer que as mulheres merecem isto ou aquilo, pois temos o
dever para com o ser humano e, neste caso dito no texto, para com as mulheres.
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