Criança morta - Cândido Portinari |
A opressão
de um grupo de seres humanos para outro é milenar. Provavelmente nos acompanha
desde a primeira vez que conseguimos nos fixar numa terra específica e a
cercamos para que outros grupos não fizessem o mesmo. Ou mesmo antes. E esta
opressão foi e ainda é justificada das mais variadas formas, desde contextos
facilmente desconstruíveis até aqueles que estão tão inseridos na nossa
história (do mundo, de uma forma geral) que conseguimos efusivamente negar.
Quando
lidamos com denúncias a respeito da opressão que pessoas postas nos grupos
oprimidos por pessoas postas nos grupos opressores, costumamos não negar que
houve a ocorrência, mas muito comumente, como uma verdade irrestrita, culpamos o
oprimido, como no caso (dentre tantos outros) da doutoranda Thais Moya, da
UFScar de São Carlos, interior de São Paulo, onde a mesma foi violentada e,
quando denunciado o ato (tendo ela apoio dos outros estudantes) foi
covardemente coagida a aceitar o fato e posta como ela sendo a responsável pelo
abuso do professor.[1]
Não sabemos
lidar com o fato, em algum momento, de sermos opressores ou mesmo mantermos a
opressão. É senso comum que grupos são oprimidos pelos mais variados motivos –
os mais comuns são cor, gênero, orientação sexual, natalidade e descrença – mas
ninguém em sã consciência se verá na condição de opressor, mesmo que saiba que
faz parte do grupo social que assim age. Basicamente, eles veem como démodée, algo que não pode ser feito
(admitir sua opressão aos outros) por ser “fora de moda”. Não creio que seja
necessária uma grande argumentação para denotar que a ideia de algo ser fora de
moda não se encaixa em conceitos igualitários. Mas é este seu mote, sua
motivação para se verem inseridos num contexto humanitário que há décadas vem
sendo exigido através da tentativa de se implementar culturalmente às pessoas,
e leis universais como os Direitos Humanos[2]
que procuram trazer luz à ignorância que por milênios nos ronda.
Assim,
encontramos o tão falado preconceito velado, onde ele existe, mantêm-se,
prolifera, mas adoramos dizer que não somos isto, que não podemos ser. A carga
conceitual discriminatória que é passada geração após geração nos torna tão
fortemente mantenedores de preconceitos que para compreender efetivamente os grupos
oprimidos e a situação de seus indivíduos, assimilar factualmente o que é ser
todos os dias exposto, escarneado, zombado, ridicularizado, agredido, desestimulado
e alijado de seus direitos fundamentais – e isto quando sua integridade mental
e física não são severamente lesionadas, o que ocorre com frequência
assustadora – é preciso fazer parte dos oprimidos, ser destes grupos.
Mas e
quando o opressor é a vítima de sua própria opressão? E quando os ditames
sociais que o fazem levantar-se contra grupos que ele considera inferiores são
os implicadores dele mesmo ser severamente oprimidos, onde ele precisa manter
um padrão de ideias e comportamentos pois, diferente disto, será este a sofrer
com a exclusão social? Sim, muitos dos opressores se veem nesta situação, e a coação
para se ser opressor, fazer parte dum grupo historicamente dominante é severamente
internalizada, chegando ao ponto do indivíduo que não mais queira fazer parte
disto tenha que lutar arduamente contra seus consensos soberbos, procurando
discernir sobre o quanto oprimir lhe é opressor.
Chegar ao
ponto de compreender fortemente esta situação não é fácil, ainda mais quando
raríssimas vezes ocorrem circunstâncias que revelem a situação em que este
opressor está inserido. Tendo em vista a situação de alguém não aceitar se
colocar (e ser colocado) como dominante pela razão acima vista neste texto e a
obrigação desde a infância de que possui padrões a serem seguidos e os mesmos
devem ser seguidos inquestionavelmente (ou mesmo porcamente questionados) nos
traz a vermos que estamos no círculo vicioso da opressão, e sair dele é uma
tarefa desejada, mas de realização dificílima, sendo o indivíduo oprimido tanto
pelo seu condicionamento em ser inferior ou superior.
Quando um
pai numa separação possui sua guarda sumariamente negada (e pondo-se o fato de
que este nada tenha a lhe desabonar) não há outra explicação que não o fato
deste ser homem, e à mulher fica o papel social – e não mais que isso – de que
é obrigação dela a cria dos filhos e esta possui uma “naturalidade” irredutível
para a ação da cria. O podemos até mesmo conjecturar sobre a evolução legal que
se fez ver na PLC 117/2013[3],
da guarda compartilhada mesmo sem acordo entre os cônjuges. Quando a cor de
alguém é um fator preponderante para que a vaga de emprego seja a razão de sua
entrada numa empresa, os que a obtiveram podem questionar-se se sua capacidade
é relevante ao processo ou se seu empregador realmente compartilha da ideia de
que a natureza da melanina influencia no trabalho, e isto é importante pois: o
que lhe garante que o trabalho lhe renderá exatamente o que lhe foi propiciado
e o que lhe garante o mesmo não ocorreria numa inversão melanínica? Podemos,
assim como feito anteriormente, conjecturar por tanto sobre a eficácia das
cotas como distribuição equitativa das vagas, mas o contexto é completamente
equivocado se pensarmos que cotas são injustas[4] e
que sua única função é contemplar uma “raça“ em detrimento de outra[5].
Uma mãe e um pai que veem um filho homossexual se põem no amor incondicional à
este e em momento algum lhe questionam sua condição natural, mas se veem presos
às mazelas duma sociedade que, eles sabem, vai dificultar ao máximo a vida do
filho e o atentam para o que este deve ou não fazer em público. Um religioso
comove-se com o sofrimento do ateu que, expulso de casa por sua descrença,
tenta promover um consenso onde a família reúna-se para que haja o respeito
mútuo, pois o seu deus não aceita aquela que aquela “pobre alma perdida” fique
desamparada sem seus ensinamentos. Os quatro casos apresentados mostram o
quanto é difícil para alguém que procura distanciar-se ou mesmo desmembrar-se
das amarras sociais subjugadoras, mas que o dia a dia não lhes proporciona uma
vida sem o sofrimento da opressão, mesmo fazendo parte dos grupos
historicamente opressores.
Todas estas
situações que envolvem as dificuldades dos ‘subalternos sociais’ e os
detratores não-detratores nos mostram que o sofrimento é inegavelmente amplo, e
insanamente proporciona a degeneração da vida social como, paradoxalmente, uma
regra para a vivência social. A sociedade é doente por causa da separação e do
vislumbre degenerativamente abrangente, mas o sente consolidado em suas raízes
a ponto de negar veementemente o contrário, o confronto destas ideias. E assim
continuamos presos num ad infinitum
sem muitas vezes nos darmos conta.
Desoprimir
acaba por ser o início, para os membros dos grupos favorecidos e que não mais
queiram manter este status quo, da
humanização do ser humano, como forma de ter a si o pleno de se estar num mundo
em que as pessoas possam ter sua igualdade definida e suas diferenças
respeitadas. Ser um desopressor, que luta pelos direitos de todos, bem como
pelo direito de não oprimir, de não ter ideias, conceitos e atitudes que de uma
forma ou de outra desagregue e rebaixe qualquer outra pessoa por qualquer coisa
que seja. Ser um desopressor nos instiga a lutar pela causa humana nos apoios
das causas e das lutas daqueles que há milênios sofrem nas mãos de grupos que
em toda a história puseram-se a frente de outros, mesmo fazendo parte dos favorecidos.
É a empatia pela dor e o sofrimento do outro, é a conclusão de que o outro é,
nada mais nada menos que um ser humano e que possui sua natureza complexa
extremamente ligada a ele mesmo.
No entanto,
não é possível abarcar a dor tórrida que deflagra a vida de quem é
marginalizado. Cada nuance, cada gesto, cada medo enfrentado por estes em cada
minuto de sua existência jamais será claramente compreendido por aqueles que
não passam pela mesma situação. E este é um dos motivos que torna um
desopressor um agente empático, de referências humanistas generalistas, mas sem
o cerne da dor e das dificuldades que atropelam miseravelmente nossa espécie. A
luta contra o machismo, contra o racismo, contra a homofobia, contra o
preconceito aos descrentes, contra a xenofobia e afins não é de um desopressor
em suas táticas e estratégias, suas definições e suas dores, tão claras e
reais, mas deve ser apoiada conforme as necessidades que aqueles demonstram
ter, sempre com o ser humano tendo em primeiro lugar. E ter o ser humano em
primeiro lugar significa entender que sua luta para ter seus direitos
respeitados não deve ser restrita ao grupo em si, mas à todos. Não é papel do
opressor definir como será a luta do oprimido. O papel do opressor é deixar de
ser opressor, para que não mais exista o oprimido.
O que
podemos alicerçar não são os papeis sociais que nos são alcunhados, mas o
emergir de uma sociedade em que as pessoas são exatamente o que esta palavra
significa, pessoas, com o direito natural de sermos vivos e vivermos com nossas
necessidades contempladas, não deixando que ninguém queira impor conceito
algum. Não há literatura científica ou histórica séria que dê respaldo à
dominação de um ser humano sobre outro. Por que haveria do senso comum fazer
este papel? Não há. Não é papel do senso comum permear a sociedade
dogmatizando-a, conceituando-a dentro de sua total falta de completude a tudo
que envolve a humanidade. O senso comum, no fim, não possui papel
verdadeiramente sério algum. Seu papel é manter o círculo vicioso.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Comente!