quinta-feira, 4 de junho de 2015

Ateus não pecam (mas as vezes agem como se existisse pecado)

O mercado de Escravos - Jean-Leon Geròme
Sempre que um ateu chama uma mulher de puta/vadia por que ela "já deu pra todo mundo" ou por que ela usa roupas curtas está repetindo um pensamento que lhe foi incutido pelo cristianismo desde que nasceu: a mulher deve ser casta.
Sempre que um ateu tenta ofender a masculinidade de um homem heterossexual chamando-o de veado/bicha por que ele chora, ouve Lady Gaga, usa roupas consideradas afeminadas ou por que ele não "come todas", ou sempre que esse ateu discrimina homossexuais, diminuindo-os de alguma forma por não serem "homens de verdade", por se relacionarem sexual e afetivamente com outros homens, ou sempre que discrimina lésbicas por se relacionarem com outras mulheres ou por se vestirem de forma socialmente dita como masculina, está perpetuando o pensamento cristão de que o homem foi feito para a mulher e a mulher para o homem. Sempre que um ateu discrimina uma pessoa transgênera, desconsiderando sua identidade de gênero e insistindo que essa pessoa é definida pelo gênero com o qual nasceu, por seus órgãos genitais, está repetindo o pensamento cristão de que "Deus fez o homem e a mulher à sua imagem e semelhança", ou seja, o gênero sendo determinação de Deus, intocável e imutável. Sempre que um ateu discrimina negros e negras também está repetindo uma das interpretações de um trecho bíblico, tal interpretação diz que os negros são descendentes de um amaldiçoado e essa foi durante muitos séculos justificativa para a escravização de um povo.
Historicamente, o Cristianismo não inventou o machismo, a lesbofobia, a homofobia, o racismo e a transfobia, mas, no Brasil, tal religião foi não só a porta de entrada desses preconceitos como ainda é sua força mantenedora através das várias denominações cristãs, da mídia, da doutrinação religiosa de crianças, da interferência cristã na educação pública e na política brasileira. Tais preconceitos são direta ou indiretamente reforçados pela Bíblia e NÃO são considerados pecados no Cristianismo nem em nenhuma religião que se autodenomine cristã. E, parece-me, em nenhuma vertente religiosa. Possíveis exceções seriam a Umbanda e o Candomblé, que se relacionam muito bem com a liberdade sexual dos seus seguidores.
O conceito de espírito/alma é um conceito religioso. A "pureza espiritual", e consequentemente carnal, é colocada como um nível a ser alcançado, através da religião, das divindades ou de doutrinas. Em praticamente todas as grandes religiões do mundo prega-se a superioridade "do espírito" sobre a carne (ou seja: sexo é pecado ou deve ser praticado dentro de determinadas regras); em praticamente todas elas tem-se como "vontade divina" a heterossexualidade e a castidade; em todas as religiões há a separação entre os fieis e os infieis, os iluminados e o não iluminados que precisam ser ajudados, instruídos. No Brasil, a religião com maior número de adeptos ainda é o Cristianismo. A mentalidade brasileira foi moldada, em grande parte, pelo pensamento católico que obliterou as culturas indígenas aqui encontradas pelos colonizadores e as culturas africanas dos negros que a traziam consigo quando aqui foram escravizados. Aos indígenas, era dada a concessão do perdão através da catequização, pois foram considerados inocentes e ainda não em contato com a Palavra de Deus; aos negros foi dado o vaticínio da escravização, por serem tidos como descendentes de um amaldiçoado por Deus, segundo algumas interpretações.
A colonização do Brasil pelos portugueses não se deu apenas em âmbito político-econômico; como reza a cartilha da dominação, o povo brasileiro, apesar de ser formado por três etnias/culturas, também foi formado culturalmente de forma colonial, sendo a cultura europeia de superioridade masculina, cristã e branca a dominante e imposta a todos os demais e seus descendentes. Os pensamentos dos brasileiros sobre a função do homem, da mulher e do sexo na sociedade são, em grande parte, herança cultural europeia católica.
Sendo assim, estamos acostumados aos padrões comportamentais sob a ótica cristã, ainda que não sigamos o Cristianismo; e mais ainda pela ótica católica, religião oficial do Império até o início da República, em 1890. De lá para cá, a separação entre Estado e Igreja Católica "nunca se completou e, na verdade, ela tem passado por uma regressão 'lenta, gradual e segura', de modo geral misturando hipocrisia, demagogia e (má) fé. Senão, vejamos: Getúlio Vargas instituiu os feriados públicos religiosos; o Marechal Castello Branco proclamou N. Sra. Aparecida 'padroeira' e 'generalíssima’ do Brasil; José Sarney incluiu o 'deus seja louvado' em todas as cédulas (mantido e negritado pelo 'ateu' Fernando Henrique Cardoso); o 'Preâmbulo' da Constituição de 1988 falaVA em deus (apesar da proibição indicada no Art. 19 do mesmo documento) e quase todos os tribunais e órgãos públicos brasileiros ostentam crucifixos (que aumentam de tamanho à medida que aumenta a importância da corte ou do órgão)."[1]
Desta forma, influenciados pelo cristianismo majoritariamente católico, sempre que nos debruçamos sobre questões como liberdade sexual da mulher, papel social do homem e da mulher, direito ao aborto, maternidade, manutenção financeira da família, conceito de família heterossexual, adultério, virgindade, promiscuidade, alistamento militar, homossexuais, lésbicas, bissexuais e pessoas transgêneras, corremos o risco de nos deixarmos levar pelos padrões cristãos do que é o "certo", o "bom" e o "normal".
Seja com ou sem a noção de pecado, todas as religiões têm regras de conduta e em todas elas existe a regra que diz que o ser humano que não crê em nenhum deus ou doutrina religiosa está errado, precisa ser salvo de si mesmo, instruído na "verdade", afastado do mal ou sofrerá imensamente nesta vida, na próxima reencarnação ou no Inferno.
Para as religiões calcadas na Bíblia (e em muitas não bíblicas), pecado é tudo aquilo que vai contra a lei e a vontade de Deus. As leis e as vontades de Deus estão lá descritas e sua interpretação depende de qual vertente religiosa se segue. Enquanto que o Velho Testamento é em parte um dos livros da religião judaica, o Novo Testamento é unicamente cristão, prestando-se ao Catolicismo, ao Evangelismo, ao Kardecismo e à Umbanda, entre outras religiões autodenominadas cristãs.
Para efeito deste texto sempre que nos referirmos a Deus estaremos falando do deus bíblico como o conhecemos no Brasil, que é uma sociedade totalmente influenciada por esse deus e muito pelo Catolicismo, uma vez que fomos colonizados pelos portugueses, originalmente católicos. O Catolicismo, assim como todas as religiões bíblicas (e muitas não bíblicas), se arroga como o único interprete das leis e vontades divinas e, portanto, considera que tanto judeus como evangélicos, islâmicos, xamanistas, wiccas, adoradores da consciência de Krishna, Jedis, satanistas, esotéricos, espíritas kardecistas, umbandistas e candomblecistas vivem em pecado e, ao professarem sua fé, ajudam a propagar o pecado no mundo.
Ateus, que são pessoas que não creem em nenhum deus de nenhum tipo, seja o deus bíblico seja qualquer outro imaginado pela humanidade, estão pecando sob a ótica católica e sobre todas as óticas de todas as religiões e crenças religiosas, ou, no mínimo, estão no caminho errado de dor e sofrimento por não serem "espiritualizados". Mas, se pararmos para refletir sobre o conceito de pecado - não seguir as leis divinas - percebe-se imediatamente a incoerência de se considerar um ateu como um pecador: o pecado é um conceito religioso. Só aceita a noção de pecado quem segue uma das religiões que o reconhecem.
Ao não seguir nenhuma religião e ao não crer em nenhum deus, também não se crê, logicamente, em leis divinas; logo, não se crê em pecado, que é uma noção bíblica.
Em qualquer sociedade, uma autoridade só é autoridade se for reconhecida pelos demais membros daquela sociedade que se colocam como seus subalternos e a reconhecem como legítima. Assim é com as autoridades institucionais, como o Estado, as leis, a polícia, as forças armadas, o líder em uma tribo e daí por diante. A autoridade, para atuar assim, precisa ser legitimada pela sociedade em que se insere. Do contrário, ninguém a reconhecendo como sendo autoridade, seu poder regulador será igual a zero. No momento em que ateus não reconhecem a autoridade de um deus, automaticamente deixam de serem pecadores, pois as leis desse deus - e sua noção de pecado - apenas servem para os que o reconhecem como uma autoridade.
A religião não tem o direito de gerir a vida dos que não a seguem; o Cristianismo não tem o direito de gerir a vida dos ateus, definindo que regras eles devem seguir e determinando seu comportamento social e sexual. Esse direito só é dado à religião quando se passa a segui-la. Consequentemente, a única parcela da população que pode ser regulada pela noção bíblica de pecado é a parcela que segue o Cristianismo. Os únicos passíveis de pecar são os religiosos. Ateus, nunca!
A ética cristã é machista, homofóbica, lesbofóbica, racista e transfóbica, já que seu deus privilegia homens heterossexuais, faz diferença entre os povos e determina que homem e mulher têm papeis e funções rígidas, e são feitos à sua imagem e semelhança, dando margem à transfobia. O Brasil é constitucionalmente um país laico. Um país laico, por definição, não reconhece nenhuma religião como sendo estatal; um país laico reconhece que a religião é uma questão individual, não uma questão estatal; um país laico não exige de seus cidadãos que se portem dessa ou daquela maneira de acordo com leis divinas, mas sim de acordo com leis seculares que gerem a sociedade. Logo, ateus são incapazes de pecar: não reconhecem a autoridade do deus bíblico sobre eles, as leis desse deus não lhes dizem respeito; não são subalternos desse deus nem legitimam seu "direito" de lhes dizer o que é certo e o que é errado.
A ética dos ateus, no entanto, ainda pode ser (e muito frequentemente é) intensamente influenciada pelo pensamento de Deus uma vez que são criados segundo os parâmetros desse deus; por isso vemos na militância ateísta tantos ateus que continuam pensando como cristãos, embora tenham se libertado dessa fé ou jamais a tenham seguido. Tal influência se dá quando ateus reagem de forma preconceituosa, como cristãos quando confrontados com comportamentos tidos como pecaminosos pela Bíblia. A ética ateísta, por extensão, deveria ser logicamente baseada na racionalidade. Não há nada de racional no preconceito, nenhuma razão real para se discriminar outro ser humano pela cor da sua pele, pelo seu gênero, pela sua identidade de gênero, pela sua orientação sexual ou pelo seu comportamento social, exceto em casos de crimes. Não há nada de pecaminoso no comportamento social e sexual de adultos. Não existem pecados para os ateus. Apenas religiosos pecam, assim como apenas religiosos blasfemam, que é um dos piores pecados para os cristãos. Apenas os religiosos reconhecem no deus bíblico a autoridade para gerir suas vidas e por isso, quando o desobedecem, sabem que estão pecando contra seu deus.
Quando um religioso age como um machista, como um homofóbico, como um lesbofóbico, como um racista ou um transfóbico, ele está seguindo as orientações de sua religião baseada na Bíblia; quando um ateu obedece a essas orientações de cunho bíblico, ele está apenas demonstrando que não examinou as questões a fundo e não exercitou seu poder de raciocínio com o mesmo afinco com que o usou para concluir que não existe um deus. Assim como a racionalidade e a lógica aniquilam com a ideia de um deus, todos os preconceitos também deveriam ser abolidos por qualquer pessoa que pratique a racionalidade e use a lógica. Ateus não pecam, mas podem agir de forma irracional tanto quanto os cristãos, quanto à questões de gênero, de etnia, de orientação sexual e direitos iguais para todos.

2 comentários:

  1. Copiando o comentário feito no Facebook:
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    Pensamento CRISTÃO? E as outras religiões, algumas até piores, como o Islamismo, cacete?
    Isso que foi dito não é discurso ateu, é discurso militante esquerdista, mais especificamente discurso LGBT. Eu não tenho que ser lésbica nem gayzista para ser ateia e sexualmente liberal. Eu já escrevo desde a década passada para provar isso.
    Eu estou comentando aqui para deixar registrado que nem todo ateu é idiota útil de esquerda.
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    Acréscimo: cabe dizer que, em princípio, eu não classifiquei como lesbossocialista a autora, apenas o texto. Não faz diferença SE DIZER não-esquerdista quando se AGE favorecendo a esquerda. Eu já disse isso a pelo menos três direitistas declarados nos últimos 70 dias. Veja, por exemplo, a postagem do meu próprio blogue onde eu digo isso sobre o padre Paulo Ricardo: http://avezdoshomens.blogspot.com/2015/04/mentiras-que-nao-funcionam-e-verdade.html.
    Bom, quem tiver coragem de ler esse texto, vai ver que eu sou ateia e defendo a licenciosidade, e o blogue tem essa linha desde quando começou em 2006.
    Beijos.

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    1. Cara Abigail, você leu o texto completo ou só a introdução? Perguntamos pois o texto explica o porquê de abordarmos tais preconceitos como sendo pensamento cristão no Brasil. Nenhuma religião influenciou tanto a sociedade brasileira quanto o Cristianismo católico. E sim, tens razão, não tens que ser lésbica nem "gayzista" para ser ateia. O texto, em nenhum momento, diz que alguém tem que ser isso ou aquilo. Teu comentário evidencia que não leste o texto, mas mesmo assim, obrigado por comentar. Quanto à parte de "discurso militante esquerdista" preferimos não nos pronunciar, uma vez que o texto não tem nenhuma relação com nenhuma corrente política. Abraços.

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